A guerra da Ucrânia decantou alguns “especialistas” que fazem turnos nos media a debitar análises assaz coincidentes com a propaganda do Kremlin e, no mesmo fôlego, a criticar freneticamente o Ocidente e a NATO, não só pela guerra, mas também por vários males do mundo, reais ou imaginários. Nestes porta-vozes oficiosos do Kremlin incluem-se órfãos da URSS, admiradores do fascismo putinista, obcecados antiamericanos, adeptos de delirantes teorias da conspiração, ou uma amálgama disso tudo.
Quando confrontados com o inescapável facto de ter sido a Rússia quem invadiu a Ucrânia (em 2014 e 2022) a escapatória consiste grosso modo em duas falácias:
- A agressão russa é uma justificada resposta a “provocações” da OTAN e da Ucrânia, o que corresponde, mutatis mutandis, a argumentar que num caso de flagrante violação, a culpa é da vítima, por “provocar”, e de quem a ajuda, que não tem nada que se meter. O que pode levar a concluir que os líderes russos não têm vontade própria, agindo, perante certos estímulos, como os cães de Pavlov.
- Os EUA, o Ocidente, etc., também fizeram esta ou aquela maldade, neste ou naquele sítio, neste ou naquele tempo, enfim a típica falácia “tu quoque”, mais conhecida por “whataboutismo”. (Ah, e os EUA também fizeram X, no sítio, logo o que precede está justificado).
Este rol de desculpadores da Rússia inclui militares, grupo no qual se inclui a troika constituída pelos generais (zenerais, como são já conhecidos na infosfera) Raul Cunha, Carlos Branco e Agostinho Costa.
É um grupo inclusivo, as nossas Forças Armadas contam com um diverso acervo de admiradores da Rússia. Dos que vieram para as Forças Armadas em missão revolucionária, seguindo a decisão de Álvaro Cunhal (infiltrar as forças armadas em vez de desertar), alguns mudaram de rumo e de cosmovisão, mas muitos refinaram a sua obsessão antiamericana ao longo do tempo.
Estão também presentes, vindos de áreas ditas de direita, antiamericanos e antiliberais que, nem se sabe bem porquê, olham para a Rússia como o último reduto da Cristandade ou de acrisolados valores.
E, claro, outros ainda que são antiamericanos por reflexo condicionado, aculturados numa atmosfera mediática e académica que ressuma essa obsessão, talvez como resultado da “grande marcha através das instituições” que Gramsci preconizou in ilo tempore.
O general Cunha, o mais antigo dos três, teve uma carreira bem sucedida e sempre foi visto como um militar competente quanto baste, terminando como juiz militar, para acrescentar conforto à algibeira. Mas também sempre deu a entender para que lado pendia a sua mundivisão, não sendo segredo que seguia de muito perto aquela que é veiculada pelo Avante, PCP, Putin, Maduro, e outras criaturas e entidades igualmente peculiares.
O facto nunca foi preocupante, porque somos uma sociedade nas antípodas daquelas que o general Cunha parece considerar “boas” e porque, quando no activo, diluiu com algum êxito as suas inclinações, já que são coisas que não se discutem no âmbito profissional, até porque as leis e regulamentos expressamente o proíbem.
E talvez seja este um dos problemas. A formação dos oficiais não toca em temas de filosofia política e isso tem consequências, já que a guerra, sendo o mais complexo empreendimento humano, não tem uma lógica própria, estando subordinada à finalidade política. Gente assim é docilmente influenciável por narrativas simplificadoras, o que ajuda a explicar a facilidade com que a manipulação e a propaganda fazem o seu caminho. Por isso mesmo, as opiniões sobre a guerra e as guerras são geralmente marcadas por simplistas, e por vezes simplórias, visões marxistas, assentes em moralizações instrumentais e selectivas. Talvez as escolas de oficiais, além da gramática da guerra, devessem também abordar as lógicas políticas e ideológicas que estão a montante e que, muitas vezes, são importantes na própria avaliação dos factores militares do potencial relativo de combate.
É que as guerras podem ser determinantes no destino dos povos, pelo que militares e políticos de visão estreita tendem a ser muito perigosos, como se viu com Péron, Chavez, Putin, etc, e se sofreu por cá durante o PREC, quando tantos militares foram infantilmente manipulados por rapazolas semiletrados, de cabeça virada por leituras apressadas de livros de Lenine, Mao, etc. O próprio Vasco Gonçalves, como se sabe, era controlado por um membro do PCP.
A guerra na Ucrânia parece ter levado o general Cunha de volta às suas raízes, embarcando na vertigem da propaganda, da justificação das acções da Rússia e da persistente e obcecada crítica aos EUA.
Afastado precocemente das televisões nacionais, ao que consta em função de um episódio constrangedor, está activo no Facebook e, garantem-me algumas fontes, no Russia Today Espanha (órgão de propaganda e desinformação dependente do Kremlin).
Para demonstrar a coincidência entre as verbalizações do general Cunha e a propaganda russa, e o hiato entre ambas e a realidade, vou analisar algumas das suas afirmações, entre centenas ou milhares que estão disponíveis online:
Em 17 de Março de 2022, menos de um mês depois da segunda invasão da Ucrânia, em entrevista ao “Setenta e Quatro” (um site que se apelida de “progressista”), o general Cunha dava largas ao seu entusiasmo pró-russo: “os militares sabem que se os russos quisessem o normal era arrasar”.
Não me consta que alguém lhe tenha passado procuração para falar em nome dos militares, mas o general não se detém com minudências desse tipo. Ora o que se sabe, quanto aos russos, é que não só querem, como o fazem quando podem, e as cidades, vilas e aldeias arrasadas até aos alicerces, são a prova insofismável. O facto de não arrasarem outras, não se deve à falta de “querer”, mas à insuficiência do “poder”.
Para o general, nos primeiros dias da invasão os russos “Foram nitidamente moderados na maneira como aquilo foi feito”. Ora a explicação para os estrondosos falhanços russos não foi, como se subentende do elogio, da “moderação” russa, mas do facto sobejamente conhecido de que o invasor acreditava que ia colher o fruto maduro e inteiro, sem ser preciso grande esforço. O que não aconteceu!
“Nas cidades têm nitidamente evitado provocar baixas civis”
Pura mentira. As cidades completamente arrasadas, a tentativa de destruir os sistemas de energia no inverno, para que milhares de pessoas morressem de frio, os comprovados massacres a Norte de Kiev, os ataques a infraestruturas cerealíferas, etc, provam exactamente o contrário.
Consciente disso mesmo, o general faz a típica escapadela whataboutista, invocando, indignado, os “civis que foram mortos na Síria, e no Iémen”.
Na Chechénia? Na Chechénia é “diferente, é na Rússia”, estranha afirmação que permite concluir que, para o general, a Rússia tem todo o cuidado com os civis do inimigo, mas não com os seus. De algum modo isto faz sentido para ele.
“Qual o interesse dos russos em matar os civis que estão em Mariupol, que até são a maioria russófona?”, pergunta retoricamente o general?
Uma vez que o próprio general reconhece que os chechenos foram dizimados, mesmo sendo russos, não se entende como no momento seguinte já não vê “interesse” em matar população russófona. Que se saiba os 25 000 civis chechenos mortos em Grosny, falavam russo. E o que é que “falar russo” tem a ver com a questão? Milhões de ucranianos são russófonos a começar pelo próprio Zelensky, Reznikov, etc. Até o José Milhazes é russófono!
A verdade é que na cultura militar russa não existe qualquer inibição ética e muito menos legal, quanto aos danos provocados a civis, intencionalmente ou não. Não é “interesse” é mesmo “desinteresse”. O próprio uso generalizado de mísseis antiaéreos do sistema S300, em bombardeamentos terrestres, implica erros de centenas de metros e a inevitável e assumida consequência de mortes civis.
Os russos“ainda não empregaram as bombas termobáricas, uma bomba de 44 toneladas de explosivos.”
Na verdade usaram e usam várias munições termobáricas, mas faz uma certa impressão que um general do Exército Português não saiba que não há, em nenhum lugar do mundo, bombas, termobáricas ou não, com 44 toneladas. O uso de hipérboles para destacar o poder russo é constante na retórica do general e não é por acaso. A propaganda russa no Ocidente, apoiada em ameaças apocalípticas por vezes desbocadas, de certos dirigentes russos, e em opiniões de determinados “especialistas” ocidentais avençados e organizações afins, tem como objectivo dividir os países e manipular o medo e o descontentamento popular no sentido de fazer diminuir ou cessar o apoio à Ucrânia.
“Estou convencido que a única solução é Zelensky aceitar as condições que lhe vão ser impostas. Se não aceitar, isto não acaba.”
Sem eufemismos nem disfarces, é exactamente o que diz Moscovo, na sua campanha informacional dirigida ao Ocidente. É também o que qualquer agressor diz, em qualquer guerra: se vocês se renderem, acaba a guerra e La Palisse não diria melhor.
Percebe-se o quase desespero com que o general tenta convencer aqueles que o ouvem, desta linha da propaganda russa. É que a sua convicção não se sustenta se o Ocidente continuar a ajudar. No mundo real, a Ucrânia luta e tem conseguido o apoio financeiro e material do Ocidente, uma fonte muito mais abundante de recursos do que os gerados pelo agressor, cuja economia é sensivelmente do mesmo tamanho que a espanhola, e cuja tecnologia deixa bastante a desejar. Na verdade, a prazo, a solução desenha-se na atricção de material, e o agressor terá naturalmente mais dificuldades para regenerar capacidades militares que compensem sequer as perdidas no campo de batalha. As dissensões internas, as revoltas, as purgas de comandantes militares, etc., assentam precisamente na progressiva indisponibilidade de abastecimentos vitais para o combate e para a vida das tropas. Para manter a guerra, a Rússia terá de afectar à rubrica militar mais de 20% seu orçamento federal anual, algo que não pode sustentar por muito tempo, já sem falar do impacto dos milhares de mortos, feridos e desaparecidos, que irão desabar cada vez mais sobre a sociedade russa, pese embora a duríssima repressão da expressão de factos incómodos. É notável que pareça escapar ao general a solução mais simples e óbvia: os russos compreenderem, a bem ou à força, que aquela não é a terra deles e voltarem a casa.
“Ficam (40 mil a 100 mil ucranianos na frente do Donbass) cercados sem reabastecimentos … não têm a mínima hipótese”
Esta profecia do general também não envelheceu bem. Já lá vão mais de 500 dias e os ucranianos, os tais que não tinham a mínima hipótese, continuam no Donbass, indiferentes às profecias apocalípticas do general Cunha.
“Em Kiev, arrasam. Se mandarem umas termobáricas acabou-se… se empregarem (termobáricas) na sede do governo, onde está o Zelensky, fica tudo reduzido a pó e está o problema resolvido. Agora, penso que fixam ali e vão apanhar aquelas tropas [no Donbass], e aí acabou. Dnipro fica sem defesa…”
O que na realidade aconteceu, é que não só os russos não arrasaram Kiev, embora tentassem, como as tropas que para ali enviaram voltaram a correr para a Bielorússia, constantemente fustigadas por forças ucranianas. Também não apanharam “aquelas tropas”, nem se “acabou”, nem Dnipro ficou sem defesa. A avaliar pela generosidade analítica do general, tudo isto terá sido um gesto russo de “moderação”.
Mas dá para imaginar que com o génio estratégico deste general aos comandos da “operação militar especial”, verdadeiro Cristiano Ronaldo das termobáricas, aquilo estava resolvido em três tempos, e ia tudo à frente das termobáricas de 44 toneladas. Um espanto!
“Acho estúpido ele (Putin) pensar que resolvia o assunto em cinco dias.”
Sim, foi estúpido, mas como o general parece ter uma não muito recatada admiração pelas capacidades cognitivas do ex-tenente coronel do KGB, sugere, à laia de explicação, que “alguém o enganou”. Ou seja, é um génio, mas deixa-se tolamente enganar por “alguém” e o oximoro parece escapar totalmente ao general.
“Imaginar estar debaixo de um bombardeamento com os múltiplos foguetes e é bim-bim-bim”
Confesso que esta terminologia guerreira me escapa. Ou o general já esteve debaixo de um tal bombardeamento (coisa que as crónicas não relatam), e fez bim-bim-bim, ou isto é código só ao alcance de certos admiradores do armamento russo. Ora eu mesmo, em Angola, 1975, estive uma semana fechado em casa, com fogo indirecto (morteiros, órgãos Stalin, etc) do MPLA a estralejar à volta, e não tenho qualquer memória do enigmático bim-bim-bim.
“Ao Putin não interessa o império soviético, isso é tudo treta”
Não só não é “treta”, como o próprio Putin escreveu, em 12 de Julho de 2021 (On the Historical Unity of Russians and Ukrainians) que a Ucrânia faz parte da “Grande Rússia” e que qualquer coisa que não seja a “Grande Rússia”, é uma construção amputada e artificial.
E reiterou.
Em 12 de Dezembro de 2021, dois meses antes da guerra, entre repetidas negações de que iria invadir a Ucrânia, Putin disse que a queda da União Soviética “foi uma desintegração da Rússia histórica” e “O que havia sido construído ao longo de 1.000 anos foi em grande parte perdido”. E já em 2005 tinha dito que “o fim da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século”.
Tais afirmações, vindas de um líder poderoso e confiante, não são meras lamentações chorosas e inconsequentes, mas sim sinais de que pretende alterar a situação. E começou de facto a fazê-lo em 2008, conquistando partes da Geórgia, continuou em 2014, apoderando-se da Crimeia e de partes do território ucraniano, para além de outras avançadas na Moldávia, Bielorrússia e um pouco por todo o mundo, de forma maquiavélica e oportunista.
Em 2022 o momento ter-lhe-á parecido adequado para mover mais uma peça.
Enfim, chamar a esta visão do Sr. Putin, “treta”, seria pouco saudável se o general Cunha fosse russo, dada a insegurança das janelas e varandas russas.
“Não estou a defender o capitulacionismo, estou a defender que não haja mais desgraças”.
Ou seja, para o general e para Moscovo, evidentemente, a Ucrânia deve capitular, mas não se trata de capitulacionismo. Parece haver aqui uma complexidade semântica que me escapa completamente. Mas, como deixa bem mais claro, uma Ucrânia às ordens de Moscovo não seria, para ele, desgraça nenhuma. Nem precisava de o dizer.
“Acho que quem brincou à roleta russa com Putin é um dos grandes culpados disto tudo.”
Segundo o achismo do general, os culpados da invasão da Ucrânia são outros, não o homem que decidiu invadir a Ucrânia. Os seus militares provavelmente invadiram porque calhou, ter-se-ão enganado na estrada, talvez.
“Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin”.
“Bom senso” parece ser, para o general, aceitar os diktats de Putin. Se, por hipótese, o Sr Putin disser que quer ir tomar café a Berlim, montado num T-80, o “bom senso” do general Cunha, manda que se aceite. Bem dizia Descartes que o bom senso é a coisa mais bem distribuído do universo, já que ninguém se queixa de ter pouco.
“Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk… Então? Cumpram os acordos que assinaram.”
Guerra que começou, como se sabe, com a invasão da Crimeia e do Donbass pelos russos. Os mortos (6,500 militares russos e pró russos, 4,400 militares ucranianos e 3040 civis de ambos os lados), resultaram dessa guerra e da resistência ucraniana ao avanço dos russos para leste. Os “Acordos de Minsk”, peça retórica da propaganda russa, que o general obedientemente debita, na verdade foram impostos aos ucranianos à força e não foram cumpridos por nenhuma das partes. Mas o general, tão entusiasmado a papaguear a desinformação russa, parece não se lembrar, já agora, do Memorando de Budapeste, esse sim, assinado livremente pelas partes, mediante o qual a Ucrânia entregou à Rússia milhares de armas nucleares, tendo-se a Rússia comprometido a respeitar as fronteiras e a soberania ucraniana. Fê-lo? O general sabe que não, mas parece confortável com o facto.
O general acha também que Putin teria dito: “Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco”. Esqueceram-se que é um gajo do all in, se jogasse póquer era sempre all in sem problemas. Atacou porque ficou sem saída. Pôs ali as suas forças e disse “quero no mínimo isto e isto” e disseram-lhe que não.”
Esta colorida análise de vão de escada, ignora que o bluff nem sempre funciona, especialmente num jogo em que as cartas são razoavelmente conhecidas. Subestimar a inteligência e a vontade do adversário, não costuma dar bons resultados. E embora o general reitere a propaganda do Kremlin, de que a Rússia não tinha outra saída, há uma que ocorre imediatamente a qualquer pessoa normal: aceitar que os outros têm vontade própria sobre o que é seu e não invadir a sua casa. Neste momento, a saída pode ser pelo lugar por onde entraram, a qualquer momento, basta a Rússia querer, e acaba a guerra.
“Mas há lá gente muito má na sociedade ucraniana, temos de ter essa noção. Há racistas, xenófobos, supremacistas, neonazis.“
Só na Ucrânia, claro, e por isso está justificada a invasão, se o Kremlin diz que são neonazis, o general assina por baixo e invade-se.
Já na Rússia e nos outros países do mundo, provavelmente apenas existem anjos e santos. O Grupo Wagner, por exemplo, talvez seja afinal constituído por monges guerreiros que gostam de ouvir Wagner, a começar por Prigozhin, uma santa criatura.
“Porque é que Putin ia ter uma lógica destas de conquistar terreno para alargar? Não faz muito sentido. Atacar um país com 44 milhões habitantes…Qual é o interesse de Putin nisso? Não entendo porque é que ele haveria de provocar uma guerra”
E todavia foi ele que a desencadeou. Como já havia feito noutros lugares, sempre com a mesma justificação. E para entender, bastaria ler o que Putin escreve e diz, em vez de tresler a propaganda. Se o general entendesse as motivações de Putin, talvez percebesse que faz todo o sentido. Desde logo porque, face ao comprovado declínio demográfico, tecnológico e económico, perante a previsível perda de importância do seu principal produto exportador (energia fóssil), apoderar-se de súbito do maior país da Europa, garantiria à Rússia recursos materiais e humanos que lhe dariam a dimensão crítica para voltar a ser uma grande potência, apta a prosseguir o objectivo de Putin (reconstituir a “Grande Rússia”).
“Como é possível um presidente de um país aceitar entrar numa guerra sabendo que a vai perder?”
A indignação do general é dirigida a Zelensky que, passados mais de 500 dias, não perdeu a guerra, apesar de o general “saber” que sim, que a ia perder. De qualquer forma, Zelenski não “aceitou” entrar na guerra, esta foi-lhe imposta pela Rússia, o que me parece bastante diferente e se chama “legítima defesa”.
“Um general já pensa ao nível da geopolítica e da geoestratégia e eu gosto de pensar sobre quais são as causas das coisas”
A avaliar pelas abundantes declarações do general, ostensiva e repetidamente refutadas pelos factos, diria que presunção e água benta cada um toma a que quer.
“Ou pensam que Putin vai voltar atrás? Esta malta não se enxerga? “
É verdade que não parece ter vontade de recuar, mas isso não depende só da vontade dele, embora a propaganda russa nos queira fazer acreditar que a Rússia é invencível. Sim, o Czar pode ter de voltar atrás, mesmo que não queira. Acontece constantemente nas guerras. A Rússia/URSS, por exemplo, várias vezes teve de “voltar atrás”, no séc. XX, desde o Japão à Finlândia, passando pelo Afeganistão, Berlim, etc.
“Um comentador não pode ter estados de almas, tem de tentar ver e perceber as coisas”
Excelente comentário, que seria ainda mais convincente se o general seguisse os seus próprios conselhos em vez de fazer como S. Tomás, ouve o que ele diz, não faças o que ele faz.
“Eu, que estava noutra mesa e tinha recebido um SMS de um militar russo” que, “de vez em quando lá me mandam umas coisitas… a dizer: se não conquistássemos Chernobyl, os Azovs tinham rebentado com aquilo”.
É desarmante a candura com que o general reconhece como fontes credíveis as de soldados ao serviço do inimigo declarado do Ocidente. Mas na realidade Chernobyl é na Ucrânia, rebentou quando era a URSS que mandava, e estava e está sossegada e tranquila sem que os “azovs” se divirtam a “rebentar aquilo”.
“Foi onde percebemos que a verdade tem sempre duas caras, sempre.“
A verdade não tem realmente duas caras, a propaganda é que sim. Não é verdade que hajam bombas termobáricas de 44 toneladas, não é verdade que não tenham havido massacres em Bucha, não é verdade que a Rússia não ataque deliberadamente infraestruturas civis e áreas edificadas, não é verdade a esmagadora maioria das coisas que o general Cunha publicamente escreve e papagueia.
“Só Putin é que é um filho da mãe? Então e o resto? E quem andou a prometer ao Zelensky coisas? E o próprio Zelensky? “
Putin é seguramente filho da mãe dele e isso é irrelevante como argumento. O que aqui importa é que é o líder político de um país que invadiu outro para se apoderar do seu território. É um ditador que nos nomeia a nós, ocidentais, como inimigos.
O Zelensky?
Não sei, nem interessa se é gordo ou magro, se gosta de açorda ou de migas, se foi comediante, estivador, ou apanha-bolas. Não importa se é heterossexual, ou homossexual, ou bissexual, ou transexual. Não interessa se é vaidoso, modesto, se gosta de cães ou de gatos, se é judeu ou chinês, se veste Armani ou Primark.
O que importa é que, apanhado por uma invasão no cargo para o qual foi eleito, não fugiu, não falhou, não hesitou e, pelo contrário, liderou, resistiu, galvanizou, organizou, pediu, exigiu, implorou, fez tudo para que o país que lidera e o povo que o escolheu, os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram, sobreviva à destruição, à aniquilação e ao oblívio.
Um homem assim é o líder que qualquer país a enfrentar uma ameaça tamanha, gostaria de ter. Um homem assim tem a estaleca que o general manifestamente nem sonha.
“Aqui em Portugal alguém se importou durante oito anos, com aquilo que se passava no Donbass?”
Não, ninguém relevante se importou muito com a ocupação russa do Donbass e da Crimeia, e por isso é que a Rússia voltou à carga em 2022. Mas até eu, que não tenho as presunções geoestratégicas do general, escrevi, em 14 de Março de 2014, após a invasão russa desses territórios, que “o pretexto avançado, e que também já tinha sido utilizado na Geórgia, é o da “protecção das minorias russas”. O que dá pano para mangas em muitos países da região. Se a Rússia sair disto sem problemas de maior, aguardemos os próximos capítulos”.
“Havia duas hipóteses de lidar com a Rússia. Uma era o modo Merkel… Puxar a Rússia para a Europa. A outra seria hostilizá-la, cortina de ferro. Preferia, sinceramente, o modo Merkel “
Não duvido, até porque encaixava como uma luva no grande jogo russo. Os resultados foram auspiciosos para a Rússia e péssimos para a Alemanha e a Europa. A Rússia não hesitou em usar a dependência energética como arma, e Putin ficou convencido que a reacção europeia seria morna por medo e cálculo, ou seja, foi o “modo Merkel” que serviu de comburente à invasão.
Que aprendeu afinal de geopolítica um general que se gaba que “toda a vida estudei isto”?
“Quem é que perdeu nisto? Perdeu a Rússia. Em termos de prestígio, de armamento, de pessoas.”
Nisso estamos de acordo, mas cabe questionar por que razão desencadeou a invasão um homem cujas capacidades o general parece admirar. É um agente americano? Deu a ordem de invasão sob ameaça de um Colt 45? Ou será porque afinal não é o génio que o general parece idolatrar, e cometeu um monumental erro estratégico?
É que, se pensar bem, os resultados da invasão russa são basicamente estes:
- A Ucrânia “desmilitarizada” tem hoje um exército capaz de bater o pé à Rússia.
- O exército russo, mostra ser um fiasco de dimensões cósmicas e está apenas a tentar não perder terreno.
- Os arsenais russos tendem a aproximar-se do fundo do tacho.
- A Ucrânia não será, nas décadas que se aproximam, amiga ou aliada dos russos.
- A Rússia comprometeu o seu rentável mercado de energia, no fundo aquilo que lhe garantia a riqueza.
- As armas russas foram expostas como material de duvidosa qualidade, o que é mau para as vendas.
- A Alemanha rearma-se em grande escala, bem como a Polónia e todos os seus vizinhos.
- A Europa aumenta os orçamentos de defesa e desliga-se da dependência e do medo da Rússia.
- A NATO acolhe mais aliados e reafirma-se como o porto de abrigo de pequenos países vizinhos da Rússia.
- A Rússia enfraquece em prestígio, economia, poder, população, capacidade tecnológica, qualidade de vida, etc.
“Nós somos os criados de quarto dos norte-americanos” e “ O meu colega Agostinho Costa disse “a NATO é os Estados Unidos e o resto é paisagem”, e caíram-lhe em cima. É paisagem, porra!”
Sem surpresas, o general repete a mesma lengalenga da troika de generais “colegas”, do PCP, do BE, etc.
O algodão não engana.
Mas o zelo com que o general defende a Rússia e os seus líderes, esse sim, pode sugerir que age como criado de quarto dos russos. Importa contudo lembrar que foi Portugal que quis entrar na NATO, há 74 anos. E que todos os países integrantes da aliança, estão de livre e soberana vontade, fundamentalmente porque lhes parece a melhor maneira de se protegerem do perigo que espreita a leste. Quanto às expletivas pretensamente viris, nem vale a pena comentar, já tivemos Otelo que chegasse.
“Anos, anos e anos a pensar. E agora um qualquer doutor que leu duas tretas já sabe de geoestratégia e percebe tudo. Eu não percebi que Putin ia atacar.”
Torna-se óbvio que não percebe imensas coisas e talvez seja também por isso que erra sistematicamente nas suas previsões e opiniões, e persiste na defesa dos indefensáveis pontos de vista do Kremlin. Sem pretender menosprezar os “anos e anos a pensar”, eu, que saí das Forças Armadas 20 anos antes dele, escrevi em Dezembro de 2021, e republiquei em 24 de Janeiro de 2022, bem antes da invasão, que “as forças russas estão lá, estão prontas para combate e……na decisão que Putin tomará nos próximos tempos, entrarão muitos cálculos, sendo talvez o mais determinante, a sua previsão de como agirá o Presidente Biden e, em consequência, a OTAN. A Rússia … projecta a imagem de que está disposta a avançar…Há pouco tempo levou a cabo um grande exercício (Zapad 21) e a mensagem é evidente: tratou-se de um ensaio de uma eventual invasão da Ucrânia”.
“Sempre me convenci que o Zelensky aceitaria as condições impostas, que me pareciam lógicas”
E talvez seja pelo facto de confundir “lógica” com as suas convicções ideológicas (ou fretes), que o general não acerta uma. Mas chamar “lógica” às proclamações do Kremlin, parece-me excessiva generosidade. E é enganador, como os factos demonstram.
“O que é que custava ao indivíduo dizer “sim senhor, não quero entrar para a NATO” e declarava a neutralidade como a Finlândia.”
A Finlândia é um óptimo exemplo, porque foi justamente após a invasão russa de um país neutral, que decidiu deixar de ser neutral e passar a fazer parte da “paisagem”, tornando-se “criada de quarto dos EUA”. Provavelmente a sageza geoestratégica do general, resultado de anos e anos a pensar, não lhe permite ainda perceber o óbvio.
E poderia ir mais longe, as produções escritas do general Cunha são um manancial de negações, delirantes teorias da conspiração, enganos, descaradas inverdades, básica propaganda russa e, lá no fundo a ronronar, um omnipresente ressentimento para com os EUA, ou talvez uma certa nostalgia soviética, subitamente activada por essa amálgama entre fascismo e comunismo serôdio, que manda hoje na Rússia.
Sofrerá o general de oikofobia, transtorno que Roger Scruton (England and the Need for Nations, 2004), descreveu como sendo a “predisposição para, em qualquer conflito, tomar partido por “eles” contra “nós” e a necessidade de denegrir os costumes, instituições, cultura, etc, identificáveis como “nossas”?
Ou o “narcisismo das pequenas diferenças”, como Freud o designou em “Civilização e seus descontentes”?
Seja com for, e porque existe uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e Portugal, além de apoiar militarmente a Ucrânia, faz parte de uma aliança defensiva que tem como objectivo a dissuasão e resposta a eventuais ataques russos, o Artº 32º do Código de Justiça Militar (serviços ilegítimos a Estados, forças ou organizações estrangeiras) diz que “o militar que, em tempo de paz e sem autorização, se colocar ao serviço de Estado, forças ou organizações estrangeiras, contra os interesses da defesa nacional, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.”
Eu, sinceramente, não iria tão longe, até porque o espectáculo dado por estes especialistas em desinformar, é uma deliciosa mistura entre standup comedy e teatro do absurdo.
Absolutamente imperdível!