“A paz justa e sustentável passa, nas presentes condições, ou pela simples e imediata decisão de Putin de mandar regressar as tropas a casa, ou pela continuação da ajuda ocidental o tempo que for necessário, para que a Ucrânia obrigue a Rússia a negociar com piores cartas e sempre com a certeza de que qualquer acordo firmado com Putin, não vale sequer a tinta com que é escrito.”

Três meses após o início da contraofensiva da Ucrânia, o progresso das forças ucranianas é bastante mais lento do que se esperava. Há quem fale em fracasso, especialmente as fontes ligadas à Rússia.

Não, não foi uma cavalgada blindada em direcção ao Mar de Azov, como alguns anteciparam, numa expectativa irrealista, face aos factores que moldam o campo de batalha. Irrealista porque nem o campo de batalha é aquele para o qual as doutrinas estão desenhadas, nem a Ucrânia recebeu os meios necessários e suficientes para um avanço fulminante. Além disso, as restrições ocidentais ao uso de certas armas impossibilitam a Ucrânia de as usar para atacar alvos profundos, como redes logísticas, bases aéreas e navios de onde são lançados mísseis e drones. O campo de batalha está, por isso, inclinado a favor da Rússia, que pode fazer tudo sem restrições.

Mas a Ucrânia necessitava de reganhar a iniciativa face a um inimigo numeroso e bem armado, entrincheirado em defesas extensivamente organizadas, preparadas para parar, canalizar e bater forças blindadas e mecanizadas e, por isso, avançou essencialmente com infantaria e sem cobertura aérea. Os ganhos territoriais são escassos, mas não se deve todavia cair na armadilha mental de analisar a contraofensiva da Ucrânia apenas a essa luz.

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Nesta fase, talvez seja mais útil avaliar o desgaste e as perdas humanas, morais e materiais da forças russas, tendo em conta que as principais vitórias da Ucrânia em 2022 (Kharkiv e Kherson), foram precedidas de extensas operações de amaciamento das forças russas, com uma intensa campanha de fogos indirectos sobre paióis, quartéis-generais, concentrações de reservas, instalações logísticas, linhas de comunicação, etc., e lentos avanços locais, seguros, minuciosos, calculados para não malbaratar o potencial humano e material.

É evidente que uma estratégia semelhante, mas em maior escala, está em curso ao longo das linhas da frente no sul e no leste da Ucrânia, como se pode depreender dos cada vez mais contundentes ataques ucranianos sobre a Crimeia, incluindo infraestruturas navais, navios, pontes, meios de defesa aérea, instalações logísticas, etc. Neste momento, em alguns locais, a infantaria ucraniana penetrou as primeiras linhas defensivas, mantendo-se em reserva e disponível, o grosso das forças blindadas e mecanizadas. Tudo leva a crer que a chegada das chuvas não irá fazer cessar este tipo de acções.

Também não é essencial, para já, que os ucranianos atinjam o Mar de Azov. Para interromper a ponte terrestre e dividir as forças russas basta, no imediato, avançar o suficiente para colocar os principais corredores ferroviários e rodoviários que ligam a Rússia à Crimeia, ao alcance dos fogos de artilharia.

Não esquecer contudo que nada disto é estático. A Rússia mantém a superioridade aérea, tem imensos recursos, está a adaptar-se e continua a criar novas posições defensivas em profundidade.

Perante isto só há duas possibilidades: ou um difícil, lento e custoso ataque frontal, com infantaria, que possa, com tempo, levar ao colapso de uma parte significativa da frente, ou uma manobra supreendente que consiga desbordar essas linhas. O que se seguiria em ambos os casos, é doutrina: explorar o sucesso, ímpeto e um rápido e fulminante avanço para a profundidade, como fizeram as forças blindadas alemãs, ao desbordar a formidável Linha Maginot.

Mas os russos têm muitos meios aéreos, especialmente helicópteros de ataque armados com mísseis anticarro de longo alcance, e os ucranianos precisariam de uma aviação capaz de garantir o apoio aéreo próximo às tropas em movimento. Faltam aos ucranianos meios capazes de prosseguir consistentemente esta estratégia, nomeadamente aviões que contestem a superioridade aérea russa e fogos da grande alcance, capazes de atacar com eficácia as bases e os navios de onde a Rússia projecta os mísseis que alvejam todo o território ucraniano.

Apesar disso a Ucrânia mantém a iniciativa e há bastas indicações de problemas graves nas forças russas, que vão desde o paulatino enfraquecimento das unidades em contacto, ao empenhamento das reservas do teatro, passando pela falta de rotação de pessoal, escassez de munições e outras necessidades logísticas, pelo que a estratégia da água mole em pedra dura, não sendo relampejante, pode muito bem fazer ruir o dique defensivo de um momento para o outro.

Aqui entra o factor tempo porque, a menos que as linhas defensivas colapsem a curto prazo, a janela para o avanço das forças blindadas para a profundidade, reduzir-se-á em breve, devido à meteorologia.

Nesta conjuntura não tão optimista como se esperava, algumas vozes no Ocidente vocalizam a eventual conveniência de lançar negociações de paz. Pelo seu lado, o presidente Putin e os seus porta-vozes oficiais e oficiosos, sugerem repetidamente que é a contraofensiva ucraniana que impede as negociações. A narrativa russa é a de que as acções militares da Ucrânia e a ajuda militar ocidental, “prolongam a guerra” e impedem a discussão de um cessar-fogo. O que é verdade, já que, sem esta ajuda, a Rússia teria certamente alcançado os seus objectivos e imposto a sua “paz” imperial.

Sem surpresa, os corifeus e simpatizantes da Rússia, como os nossos ex-generais russófilos, o presidente do Brasil, o deus zuche da dinastia ferroviária comunista Kim, etc., ecoam aberta ou disfarçadamente a mesma ideia, este último do alto do recente estatuto de salvador dos pergaminhos diplomáticos e militares da Rússia. A mensagem da propaganda para ocidental ver é, portanto, que a Rússia quer a paz e a Ucrânia e o Ocidente insistem na guerra.

Neste momento Putin quer efectivamente a “paz”. Mas uma “paz” que “leve em conta as realidades no terreno” o que, traduzido em português, significa que pretende embolsar o território alheio que ocupa. Mas nada disto depende já da sua exclusiva vontade, outrossim do incerto resultado no campo de batalha, das capacidades industriais militares russas e da vontade do Ocidente, especialmente dos EUA, em manter o apoio material à Ucrânia.

Se o objectivo declarado ou presumido da Ucrânia (atingir o mar de Azov e/ou cortar a ponte terrestre para a Crimeia) não for atingido este ano, a Rússia gostaria de um cessar-fogo que lhe permitisse manter as terras ocupadas, enquanto aguarda mudanças políticas no Ocidente que reduzam o apoio à Ucrânia. Perante um impasse, o cessar-fogo permitiria à Rússia reorganizar, reforçar, reabastecer e, quando oportuno, alegando um qualquer pretexto, retomar o seu objetivo óbvio: capturar Kiev, instalar um governo fantoche, promover um “referendo” à maneira russa e anexar a Ucrânia.

Para a Ucrânia, o tempo é uma incerteza constante: se perder o apoio americano, poderá ter de negociar aquilo que agora considera inegociável (o seu território). Se o apoio ocidental se mantiver e reforçar, terá o tempo a seu favor e a sua capacidade militar irá subindo de nível, solucionando os pontos fracos antes referidos.

E para nós? E para o mundo?

Como sabemos, a Rússia de Putin ignorou ostensivamente o velho princípio do “pacta sum servanda”, ao fazer tábua rasa dos tratados internacionais que assinou, das resoluções da ONU, e das leis da guerra (jus in bello e jus ad bello), ao violar sistematicamente os direitos humanos, sequestrar crianças, usar substancias químicas e radiológicas noutros países, abater aviões de passageiros, usar a chantagem alimentar e energética como arma de guerra, ao atacar e usar centrais nucleares como posições de combate, ao destruir barragens, ao sabotar gasodutos e ameaçar cabos submarinos, ao fazer ameaças nucleares, ao atacar redes informáticas, ao explorar países africanos através de mercenários, etc., etc., etc. Se sair impune desta guerra, será o fim da ordem internacional baseada em regras e o mundo subsequente será como um recreio da escola, no qual um gang de rapazes maiores e violentos, impõe a sua vontade aos outros, sem que haja qualquer regra que não o seu arbítrio.

Alguém, que não pertença ao gang, quer estar num recreio assim? E algum membro do próprio gang se atreve sequer a cair no desagrado do chefe? Num mundo assim, quem tem a força, especialmente armas nucleares, fará tudo o que lhe aprouver, só se detendo perante outro poder nuclear. Se Putin triunfar, a Rússia será uma potência ameaçadora, os países mais fracos deixarão de ser soberanos e terão de sobreviver num vago estatuto de suserania, sendo-lhes concedido, pelas graças do poderoso senhor da guerra mais próximo, o direito de existir como tampão. E isso irá implicar que, a prazo, todos os países procurarão dotar-se de armas nucleares. Terá acabado o tempo dos direitos humanos, do comércio internacional, dos tratados internacionais, da confiança, da independência e da liberdade.

Será o regresso à lei da selva, ao cenário hobbesiano extremo, a uma espécie de farwest onde prevalece quem tem os melhores pistoleiros. A maioria de nós, no Ocidente, nunca viveu nessas circunstâncias, desconhece completamente o que é existir numa situação de caos, sem qualquer autoridade legítima, em que quem tem a força impõe a sua vontade. A generalidade das pessoas pode ter uma ideia do que isto significa ao ler, por exemplo, “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, ou ver os vários filmes que recriam situações apocalípticas.

Putin não disfarça que é essa a ordem mundial que pretende, porque acredita que no caos que se seguirá, a Rússia será um matulão no recreio, uma espécie de super-homem de Nietzsche, acima das regras e das restrições morais.

Uma vitória russa minará também a já reduzida credibilidade dos EUA como parceiro confiável, como fabricante e fornecedor de equipamentos militares modernos, que, no fim de contas de nada terão servido face a tropas russas armadas equipadas com armas menos avançadas.

Pelo contrário, se a Rússia for expulsa da Ucrânia e pagar, de algum modo, pelos prejuízos causados, os tratados, a lei internacional, a Declaração dos Direitos Humanos, a Carta da ONU, as Convenções de Genebra, etc., enfim, tudo aquilo em que repousa a ordem liberal, ficarão mais fortes e todos verão que a violação das regras acarretará um claro prejuízo ao violador. E se isso acontecer à Rússia e ao seu Czar, ficará claro que ninguém está imune, e, por conseguinte, nenhum líder se atreverá, nos tempos mais próximos, a desafiar a ordem mundial baseada em regras.

Uma derrota russa implicará também, desejavelmente, o advento de elites russas finalmente conscientes do seu real poder, sem confiança para novas aventuras imperialistas nos anos vindouros

Ou seja, qualquer “paz” só será efectiva e duradoura se não recompensar o agressor, desencorajando também outros de o imitar. Claramente, este não é o momento para um cessar-fogo, e pressionar Kiev a aceitar um processo de paz à medida dos russos, seria o fim da Ucrânia como país independente e o renovar da ameaça sobre a Europa. Exceptuando uma situação em que a derrota ucraniana esteja iminente e se trate apenas de minimizar as suas consequências, negociações sem condições prévias são, neste momento totalmente contraproducentes para a paz na Europa e até no mundo.

Qualquer resultado que remunere Putin com território ucraniano, será uma vitória para a Rússia e má para o Ocidente, porque encorajará os seus muitos inimigos. A única maneira de evitar essa situação é derrotar Putin de forma incontestável até porque, numa negociação em posição de força, Putin exigirá concessões e compromissos, da Ucrânia, da Europa e dos EUA. Já o fez, mesmo sem essa força negocial, quando denunciou o acordo de cereais e nas falhadas negociações de um novo, ao alegar que os países ocidentais não cumpriram e/ou não cederam às suas pretensões. Ora os países ocidentais não eram sequer parte desses acordos, e é elementar que num acordo entre Ucrânia, Rússia e Turquia, não faz sentido tentar impor condições a não signatários do acordo.

A paz justa e sustentável passa, nas presentes condições, ou pela simples e imediata decisão de Putin de mandar regressar as tropas a casa, ou pela continuação da ajuda ocidental o tempo que for necessário, para que a Ucrânia obrigue a Rússia a negociar com piores cartas e sempre com a certeza de que qualquer acordo firmado com Putin, não vale sequer a tinta com que é escrito.

Qualquer destas opções implicará problemas sérios para Putin e o seu regime, mas quem semeia ventos colhe tempestades e estas serão inevitáveis se o Ocidente não vacilar.

Vacilará? Os EUA ainda não declararam explicitamente os seus objetivos em relação à guerra, para além de declarações de que estão dispostos a apoiar a Ucrânia pelo tempo que for preciso. Em si essa promessa é forte, e os EUA forneceram até agora a maior parte de toda a ajuda militar à Ucrânia, permitindo que as forças ucranianas se aguentassem e estejam a lutar de igual para igual com o exército russo. Trata-se contudo de um apoio tímido e cauteloso, que complica as hipóteses ucranianas, como mostram as questões dos caças, dos mísseis ATACMS, etc. Provavelmente tais cautelas devem-se, em grande parte, ao receio de uma escalada. É esse medo que impede o Ocidente de intensificar o apoio vital à Ucrânia. E isso faz o jogo de Putin, reduzindo as hipóteses da Ucrânia.

Os factos são consistentes com esta tese. A reacção dos EUA e dos países da NATO aos efeitos colaterais em territórios da Aliança, de ataques russos à Ucrânia, mostra um desejo de relativizar, de alivar as tensões. O mesmo se aplica à ausência de resposta dos aliados ao reiterado “comportamento não profissional” da Força Aérea Russa em relação a aeronaves aliadas sobre o Mar Negro ou na Síria. No Kremlin, isso é visto como sinal de medo e reforça a sensação de impunidade o que, por sua vez, pode levar a incidentes mais graves, esses sim susceptíveis de escalar.

É dos livros: a agressividade aumenta quando um dos lados vê que o adversário se encolhe. A única maneira de sair airosamente deste dilema é responder de forma proporcionada. Em 2015, um F-16 turco abateu um Sukhoi-24 russo que tinha invadido espaço aéreo turco, e o Kremlin protestou mas encolheu as unhas. Putin vê as coisas segundo o prisma da força.

Neste paradigma, todas as iniciativas ocidentais que sugiram negociações de paz ecoam em Moscovo como fraqueza e confirmam que tudo o que a Rússia tem de fazer é esperar que o Ocidente recue, trocando a Ucrânia pela preservação de seu próprio conforto. Para encostar Putin às cordas é necessário mostrar força: que se forneçam à Ucrânia as armas necessárias para ganhar, levantar a proibição de atingir alvos militares nas profundezas do território russo e desamarrar as mãos dos militares ucranianos.

O Ocidente tem de assumir claramente que o inimigo é Putin, e perspectivar uma visão das relações futuras sem ele, que seja aceitável tanto para a própria elite que rodeia Putin, como para as forças pró-democráticas russas.

A linha hesitante seguida pelo Ocidente desde o início da guerra só a prolongou e tornou mais provável uma guerra futura. A lição que os aspirantes a conquistadores de todo o mundo (Xi Jin Ping, por exemplo) extraíram, é a de que têm de preparar-se melhor do que Putin, para alcançarem o sucesso no conflito contra um Ocidente a quem falta a coragem e o ânimo.