A propósito do anúncio de fornecimento de bombas de fragmentação à Ucrânia, o general Carlos Branco, conhecido nos últimos meses pelas suas intervenções mediáticas marcadamente pró-russas, surgiu na CNN a proclamar que se tratava de “uma caixa de Pandora” e que os “grandes prejudicados serão os ucranianos”.

Ora o general Branco não ignora que tanto a Rússia como a Ucrânia têm utilizado este tipo de munições na guerra que a primeira desencadeou contra a segunda. Sim, na guerra e não no “conflito”, como o general frequentemente a designa, em reveladora consonância com a novilíngua do Kremlin e dos seus admiradores.

A Rússia fá-lo e sempre o fez sem quaisquer restrições, porque tem um arsenal farto e nenhuma inibição ética, e a Ucrânia numa escala muito menor, gastando o reduzido stock herdado dos tempos soviéticos.

Antes de prosseguir, importa fazer um pequeno disclaimer: Conheço bem o general, coincidi com ele na Academia Militar, trabalhei com ele em várias ocasiões e pude comprovar a sua competência profissional. Não é esta que está em causa.

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Nesses períodos de colaboração profissional, embora fosse ouvindo aqui e ali subtis e não tão subtis referências aos seus antecedentes ideológicos e/ou partidários (muitas dessas referências sublinhavam uma prévia colaboração estudantil com o PCP/ UEC, e o concomitante enviesamento ideológico), nunca houve conversas de teor político-partidário que objectivamente pudessem confirmar essas suspeitas.

Foi já fora da Instituição Militar que me confrontei com a realidade.

Em 2008, no Auditório do IDN, comentando a invasão da Geórgia pela Rússia de Putin, o general narrava os acontecimentos como uma justificada resposta da Rússia e atribuía a culpa aos EUA. Fiquei siderado, por ser evidente que era assim que ele via o mundo e eram essas as suas simpatias e antipatias ideológicas, as mesmas que permitem compreender toda a narrativa pró-russa, antiamericana e antiocidental que, de forma algo mais subtil do que as delirantes arengas do general Agostinho Costa, marcam todas as suas intervenções mediáticas como “investigador” e “especialista”, em vários fóruns.

E só esta enorme dissonância cognitiva permite compreender algumas das suas declarações, que aqui se transcrevem, a título de exemplo e sem preocupações de ordem cronológica:

A Ucrânia não tem capacidade para avançar com uma contraofensiva”. (Um mês depois desta análise, a Ucrânia estava envolvida numa contraofensiva, e o exército russo genericamente à defesa, situação que ainda se mantém.)

Os mísseis ucranianos não têm capacidade para interceptar os mísseis atacantes”. (Na verdade têm sido abatidos milhares e com notáveis taxas de êxito.)

Em 31 de Março de 2023, clamava que uma “nova ofensiva russa de larga escala é mais do que previsível”. No mundo real, a Rússia remeteu-se à defesa, essa sim previsível e em larga escala até porque eram visíveis do ar as massivas organizações de terreno que estava a fazer.

Putin subiu nas sondagens está agora nos 90%, foi o grande vencedor”. (Isto depois da revolta de Prigozhin, como se as sondagens divulgadas pela Rússia tivessem sequer um grão de credibilidade fora da bolha da propaganda.)

A Ucrânia já atacou várias vezes a Central Nuclear de Zaporizhzhia e continua a fazê-lo. Os planos ucranianos preveem a criação de uma catástrofe”. (Na verdade foi a Rússia que atacou e ocupou a central ucraniana, ali mantém um formidável dispositivo militar, e dali alveja as forças ucranianas. Se a “catástrofe” fosse a preocupação dos russos, bastar-lhes-ia retirar e entregar o controlo da central a uma força de interposição, como já lhe foi proposto. Por outro lado, não acredito que o general tenha acesso aos “planos ucranianos”, pelo que me parece que se limitou a repetir o que sobre o assunto veicula a propaganda do Kremlin.)

Temos informações seguras de que era um QG de uma unidade ucraniana, um objectivo militar legítimo, são normais os efeitos colaterais” (Isto a propósito da recente destruição de um bloco de apartamentos em Lviv, que terá causado 5 mortos e 50 feridos civis. Curiosamente, ou não, todas as “informações seguras” invocadas pelo general, coincidem, ipsis verbis com os talking points da propagada russa. E “temos” quem? Quem é este “nós” de que o general assume fazer parte?)

Em 11 de Fevereiro de 2022, ainda o “conflito” não havia começado, já o general garantia que “uma acção militar de Moscovo limitar-se-á ao Donbass” (Não limitou, a Rússia atacou também Kherson, Zaporizhzhia, Karkhiv e Kiev, mas tal certeza prospectiva, em estreita sintonia com a narrativa russa, suscita outro tipo de questões quanto às coisas que o general anda a ler e nas quais parece confiar, para lá de toda a racionalidade.)

“O número de mortos civis durante os 8 anos que nos separam do golpe de estado Euromaidan, ilustra a frustração cada vez maior de Moscovo”. (Sobre as frustrações russas, o general sabe certamente mais do que eu, afinal viajou para Moscovo várias vezes nesses anos, mas os “mortos civis”, e militares, dos dois lados, aconteceram nas regiões ucranianas invadidas pela Rússia e resultaram da guerra que os russos desencadearam em 2014 contra a Ucrânia e que incluiu a invasão da Crimeia e parte do Donbass. Curiosamente, o general não refere nada disso, como se fosse irrelevante, preferindo papaguear a propaganda russa sobre um acontecimento interno de outro país.)

Os dramáticos acontecimentos de Bucha suscitam interrogações incómodas” (o general assobiava assim para o ar, num artigo no Público no qual, sintetizando, bolçava as narrativas russas e colocava em causa que alguma coisa de grave tivesse ocorrido naquela região, exactamente como fez a propaganda do Kremlin.)

Mais solto, em entrevista a um obscuro canal Youtube brasileiro, de um tal Rogério Anitablan, no mês passado, o general libertava as amarras e dizia tranquilamente barbaridades como:

  • o dispositivo russo é inexpugnável” (não há dispositivos inexpugnáveis, como era suposto que soubesse, afinal é militar…ou era.)
  • os europeus não parecem querer uma solução política para o conflito” (leia-se, não querem a “solução” russa de ficar com o território ucraniano que ocupa. Aliás, falar de “paz” e a de “solução política”, neste contexto,  plagiando o PCP e os serventuários de Moscovo, é apenas agitar o vento da demagogia, para disfarçar o colaboracionismo e o alinhamento com as posições do invasor.)
  • a solução mais  inteligente para os ucranianos seria o congelamento da situação”  e “para produzir efeitos benignos, a justiça de transição deve ser feita após a obtenção da paz, e não antes”. (Exactamente os efeitos “benignos” que pretende o Kremlin, para consolidar os ganhos, reequipar, rearmar e daqui a uns tempos voltar ao objectivo declarado por Putin, a restauração das fronteiras do império soviético. No fundo a repetição da receita vitoriosa que a Rússia vem seguindo desde a primeira guerra da Chechénia.)
  • o fornecimento de material de guerra ocidental é, na verdade, uma grande vulnerabilidade” (No estranho mundo às avessas do general, o invasor sente-se mais à vontade se o invadido tiver armas para se defender e a lógica é também uma batata.)
  • “os neonazis controlam grande parte do aparelho militar ucraniano” e “Esta rapaziada dos Azov tem de ser irradiada” (Estas postas, teleguiadas directamente do Kremlin, fazem tanto sentido como um frigorífico na Antártida, mas o general parece não se importar de fazer a irradiante figurinha de colador de cartazes do Sr Putin.)
  • não é de descartar uma revolta das Forças Armadas Ucranianas” (Curiosamente, três dias depois destas profecias, quem se revoltava era o Grupo Wagner, cujo assumido neonazismo não parece preocupar o general. A Bíblia descreve esta notória ambliopia do general como “ver o argueiro nos olhos do outro e não a trave no nosso”. A realidade porém é  cruel e não colabora com as generalíssimas e estratosféricas análises.)
  • A oposição política foi dizimada, Zelensky secou os “moderados” (o general referia-se, nesta diatribe, aos partidos ucranianos controlados pela Rússia, pelo que o seu peculiar conceito de moderação rima bem com “traição”. Provavelmente o mesmo conceito que leva o general a classificar de “radicais” as elites europeias, por se atreveram a ajudar a Ucrânia a defender-se e, desse modo, atravessarem-se na frente dos “moderados” objectivos imperiais russos.)
  • O que aconteceu em Belgorod foi uma acção festivaleira para justificar a continuação do fornecimento de armamento” (Para o general, como para a Rússia, as acções russas no território ucraniano são uma justa reacção ao “cerco à Rússia”, ao passo que as respostas sobre território russo, são “festivaleiras”. No mínimo, o conceito de “festival” do general parece carecer de algum refrescamento.)
  • Os EUA já começam a pensar duas vezes”. (É a esperança do Kremlin, e parece ser também a do general, por pura coincidência obviamente. Mas certamente para irritar o general, dias depois desta esclarecida cassandrice, os EUA anunciavam um novo pacote de ajuda, incluindo o fornecimento das tais cluster bombs que indignam o general. Pela boca morre o peixe…e não fala.)

Já em delírio profético indigna-se  com a “arrogância polaca, brutal a rearmar-se”, em função de “um conceito estratégico expansionista”, prevendo que “se a Polónia avançar para a Bielorrússia, as armas nucleares tácticas farão a sua aparição” (provavelmente estas não serão arrogantes, muito menos “expansionistas”, os adjectivos tremendos reserva-os o general para países que, tendo a Rússia como vizinha, decidem, nem se sabe bem porquê, aliar-se uns aos outros e gastar o seu dinheiro em defesa.)

O general garante também que “Não me espantaria se a Polónia e a Hungria se apoderassem de regiões da Ucrânia”, delírio que consta nas mais alucinadas narrativas russas, insusceptíveis de espantar o general.

Odessa? Odessa “está no imaginário russo”, e deduz-se da ligação directa que o general parece ter ao “imaginário russo”, que se Odessa está no “imaginário russo”, é russa e ponto final, os “imaginários russos” merecem todo o respeito ao general, sabe-se lá porquê.

Na verdade até se sabe. A cosmovisão do general sintetizada em (“Hegemonia global e uso da força”, JE 14 Abril 2023) resume-se num primário requisitório antiamericano, repleto de factoides escolhidos a dedo para ilustrar a malevolência essencial dos EUA.

As opiniões do general crescem num antiamericanismo frenético, que consiste, grosso modo, em transformar os EUA no culpado de todos os males do mundo, pintando-o como o mafarrico universal, maquiavélico, cínico, agressivo, mal-intencionado, imperialista, manipulador, repressivo, injusto, etc.

É difícil não ver aqui a ruminação da bafienta e simplista salganhada marxista que serve de feno intelectual a toda uma panóplia de criaturas que, no Ocidente, da esquerda à direita, vociferam contra “os americanos”: o mal absoluto é o capitalismo ou o liberalismo incarnado no Ocidente e capitaneado pelos EUA. Terá o general andado a ler Chomsky? Ou autores fascistas e neonazis?

Num provável vislumbre onírico do imaginário americano, o general não hesita em proclamar, urbi et orbi, que “os americanos sentem-se sempre muito confortáveis quando tem outros a combater por eles”. A escapadela whataboutista é contudo algo amnésica e não capta sequer, pasme-se, as centenas de milhares de americanos que morreram em combate na Europa, a combater pelos europeus.

Papagaio do antiamericanismo, o general usa a tribuna mediática, não ao serviço do esclarecimento dos factos mas sim, a meu ver, do exorcismo narcisista dos seus eventuais preconceitos e ódios de estimação, ou para satisfazer uma necessidade subjectiva, ou para participar, ao serviço de Moscovo, numa ilusão de desforra histórica.

Não é segredo, ele próprio o admitiu, que é um colaborador do grupo Valdai, galhardamente financiado pelo Kremlin, e presença assumida em muitas das reuniões. Para bom entendedor….

Voltando às cluster bombs, quanto ao tremendismo manifestado pelo general e por algumas lideranças europeias, o cinismo cavalga sem freio, tanto da parte do general como desses líderes.

O general porque jamais manifestou tal repulsa, relativamente ao uso massivo de tais munições pelos russos, apesar da taxa de falha ser bastante superior às americanas.

As lideranças europeias porque reflectem um sério problema dos países ocidentais, crentes ainda no condomínio kantiano e que leva a que, por vezes, se façam opções quanto a meios militares, mais em vitude de imediatas narrativas politicamente correctas, do que em função da pura necessidade militar.

A tentativa de minimizar danos colaterais é legítima e bem-intencionada mas, se levada ao absurdo, tende a limitar o uso de certos meios, com os paradoxos e efeitos perversos habituais. Um deles é que o inimigo saberá, à partida, que estamos mais preocupados em não causar certas baixas do que em alcançar os objectivos e não nos importamos de, para isso, retirar opções de vitória aos militares que, recorde-se, estão a lutar para proteger os seus concidadãos. E se sabe que nós não usaremos, mais provável será que os use, por não se sentir minimamente dissuadido.

Ora em guerras existenciais o objectivo é, por definição, a própria existência da entidade política. No limite isto significa as sociedades que os seus cidadãos para o campo de batalha, têm de assumir que o uso da força necessária para vencer, não é ilegítimo por definição, mas que essa qualificação depende sobretudo da intenção.

Uma entidade não deixa de ser um ente moral mesmo que seja levada, pela urgência da necessidade, em certas circunstâncias, a cometer actos imorais. A própria paz baseia-se, na era atómica, na declaração da intenção inequívoca de retaliação contra cidades, afinal uma violação massiva de todos os caveats humanitários.

Mas há outros efeitos mais subtis. Se um general não pode recorrer a determinadas armas, torna-se-lhe mais difícil pensar proactivamente as ameaças que daí decorrem, e perceber e antecipar o seu emprego por parte do inimigo.

Sublinhe-se que este fenómeno não é novo. Algumas armas têm sido, ao longo dos tempos, consideradas cruéis, inadmissíveis, injustas, brutais e até capitalistas, como a famosa “bomba de neutrões”.

Já em 1139, no Concílio de Latrão, a Igreja Católica anatematizava o uso do arco e da besta, “armas pouco agradáveis a Deus.” Com resultados nulos, obviamente. Nenhuma arma, uma vez inventada deixou jamais de ser usada ou preparada para uso, desde a besta à bomba de hidrogénio, pelo que os países que encaram o mundo como hobbesiano, regra geral não ratificam este tipo de tratados ou, se ratificam, fazem-no com reserva mental e, no fundo, encaram-nos como pouco mais do que fúteis rabiscos num papel. Quando se chega aos extremos da sobrevivência, inter arma silent legis, como terá escrito Cícero.

O problema das cluster bombs, tal como das minas, não é a sua utilização na batalha mas sim os possíveis efeitos colaterais e temporais do seu falhanço. As minas, granadas e bombeletes que não explodem, ficam por ali, espalhadas caoticamente sobre os terrenos, e podem ser accionadas por civis, anos depois das guerras onde foram usadas.

Mas neste aspecto conviria relembrar ao general, que se trata da terra ucraniana, que foram os russos que ali se instalaram à força, que usam e abusam dos mais variados engenhos explosivos, cujas taxas de falhanço são estarrecedoras. Tudo razões para que qualquer pessoa conhecedora e verdadeiramente imparcial, a ter de se “indignar”, comece por o fazer relativamente aos russos. O facto de nunca o ter feito, e se ter desencadeado logo no papagueamento das cínicas imprecações russas, diz muito do que verdadeiramente o motiva e que não parece ser nada de especialmente louvável.

Na comunicação no canal Youtube brasileiro acima referido, o jornalista (?) termina a entrevista a gabar os três fantásticos generais portugueses que debitam exactamente a mesma catilinária putinista e antiocidental.

Todos sabem quem são, conheço-os a todos, e sinto vergonha alheia por esta deplorável troika, pelas figurinhas que vêm fazendo, pelo desprestígio que, em minha opinião, fazem desabar sobre o Exército Português que, recorde-se, é o de um país que faz parte da OTAN há 74 anos, e que tem na aliança com a potência marítima, desde há séculos, a sua maior garantia de segurança e liberdade.