Quer no espaço público, quer no espaço privado, temos a tendência para discutir os mais variados assuntos em torno de dimensões com pouca adesão à realidade. Por exemplo, discutimos o socialismo ou o liberalismo, mas falamos pouco das pequenas coisas que condicionam a nossa vida: mudanças legislativas que nos escapam, pequenos processos e práticas que condicionam a nossa vida, hábitos que mudam sem que tenhamos tomado consciência da mudança, entre outras “minudências”, as quais partilham entre si o potencial para um elevado impacto na nossa vida. Contudo, pese embora o potencial impacto que pequenas mudanças podem ter na forma como vivemos em sociedade, invariavelmente terminaremos a atribuir a “grandes causas” a razão para grandes mudanças. Discutimos por isso o socialismo e o liberalismo, por exemplo, mas investimos pouco do nosso tempo a reflectir sobre a relevância daquilo que tende a ser apresentado como pouco relevante.

A dificuldade em ultrapassar este enviesamento do debate reside, porventura, numa certa ignorância da história, da filosofia e da ciência política em geral. Há, e é preciso dizê-lo sem pruridos, uma enorme ignorância em relação aos “pequenos pormenores” que nos permitiram chegar aqui. Compreender a relevância política e cultural das pequenas coisas que fazemos em sociedade, aparentemente tão simples e irrelevantes, é algo que implica, literalmente, estudar.

Ora, por via da farsa Covid assistimos ao desenrolar de um conjunto alargado de pequenas mudanças, as quais foram sempre apresentadas como relacionadas com um “bem maior”, mas com total desprezo pelo “bem maior” que tinha estado na sua origem. Sucede que, por definição, “bens maiores” não devem estar em contradição. Caso contrário não são “bens maiores”; ou então não estamos bem a compreender o que significam esses “bens maiores”. Por exemplo, a saúde pública não pode entrar em contradição com a liberdade. Quando tal contradição ocorre, ou não estamos perante um verdadeiro problema de saúde pública, ou não entendemos o alcance daquilo que significa liberdade. Vimos esta ignorância vir ao de cima de forma sistemática durante a farsa Covid: quando afirmamos que a liberdade não pode contradizer a responsabilidade pelos outros manifestamos uma clara ignorância acerca do que é liberdade. A definição de liberdade já encerra em si a responsabilidade, a qual é inerente àquela e não subsidiária. Usar a responsabilidade para limitar a liberdade por via administrativa não é mais do que a manifestação de uma profunda ignorância em relação ao que significa liberdade.

Aqui chegados, é altura de trazer à liça aquilo que informa o título deste artigo: o great reset. O great reset não é uma teoria da conspiração, mas sim um plano orquestrado e explanado em vários livros, artigos de opinião, artigos pseudo-científicos e em dislates que os infelizes que ainda ligam a televisão tendem a escutar impávidos e serenos.

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O great reset, acerca do qual já escrevi nesta coluna da Oficina da Liberdade no Observador, foi tornado possível pelo recurso a pequenas mudanças. Durante a farsa Covid assistimos ao seguinte. Um conjunto alargado de pequenas actividades, características da forma como nos organizamos em sociedade, foram de forma súbita reguladas. Coisas simples, como visitar um amigo, passaram a ser alvo de regulamentação estatal. Tal regulamentação foi apresentada como sendo feita em nome de um “bem maior” (a saúde pública), mas tal nunca foi verdade. O que na verdade ocorreu foi um movimento em dois tempos. No primeiro tempo, pequenas actividades neutras foram regulamentadas. Isto é: os proponentes da regulamentação das visitas a amigos e das viagens não fizeram qualquer juízo de valor sobre a bondade de visitar um amigo ou de viajar. Naquilo que foi apresentado como sendo um exercício de prudência, actividades neutras continuaram a ser neutras: só estavam proibidas em nome de um critério de risco, centralmente definido, o qual tinha a capacidade extraordinária de transformar algo neutro em algo temporariamente mau. Isto parece algo de somenos importância, mas ganha relevância quando analisamos o segundo momento do great reset.

No segundo momento do great reset, a neutralidade de pequenas actividades está já definitivamente colocada em causa. Isto é: o direito de um cidadão a circular dentro do seu próprio país já não é algo neutro, protegido constitucionalmente, mas sim algo objectivamente mau, o qual só deve ser feito quando se justifique. Àquilo que era neutro passou a ser atribuído um valor. Para que tal “pequena mudança” ocorresse foi necessário ir adaptando a farsa Covid. O cidadão atento terá verificado que iniciámos a farsa Covid com a necessidade de estados de emergência, que era o quadro legal que permitia ao Governo limitar liberdades. Ora, neste momento o Governo transferiu a capacidade de limitar liberdades para os agentes da sociedade. Exemplo disso mesmo é a colocação dos estabelecimentos comerciais a definir quem pode, ou não, entrar no seu espaço. Isto, que passou a ser perfeitamente normal, era, até há bem pouco tempo, ilegal e inconstitucional na vasta maioria dos países ditos ocidentais. A transferência daquilo que tinha um quadro legal e de excepção bem definido para a esfera dos vários agentes do mercado não é algo feito ao acaso. Na verdade, serve uma agenda mais alargada, a qual também não constitui nenhuma teoria da conspiração: está até bem documentada.

O leitor atento (que serão muito poucos) terá certamente verificado que pessoas como Mariana Mazzucato, economista famosa (não necessariamente de qualidade) e conselheira de Sua Santidade o Papa Francisco, veio propor a introdução de “confinamentos climáticos”: proibir viagens, consumo de carne de vaca e outros “pequenos pormenores” em nome da farsa denominada de “crise climática”. De novo, mas desta vez de forma mais contundente, assistimos ao mesmo movimento: aquilo que eram actividades neutras são rapidamente transformadas em actividades às quais atribuímos um valor intrínseco. O que era neutro passa a ser obviamente mau. Algo tão simples como comprar carne de vaca deixa de ser uma actividade neutra aos olhos do Estado e da sociedade, e passa a ser uma actividade à qual atribuímos previamente um juízo de valor: é mau comprar carne de vaca.

Mariana Mazzucato não é a única idiota a falar de confinamentos climáticos. Mas o problema não são os idiotas que falam em confinamentos climáticos. O problema são os idiotas que não entenderam, porque não estudaram, o alcance das mudanças em curso. Não é por isso de estranhar a facilidade com que o controlo à entrada de restaurantes foi “aprovado” pela generalidade dos partidos e dos cidadãos. Também não é por isso de estranhar que muitos vivam na ilusão do “voltar ao normal”.

Não voltaremos ao normal. Antes pelo contrário: teremos um novo normal. Nesse novo normal, em que tudo o que era neutro passou a ser mau, o cidadão circula mediante apresentação de identificação digital (que é o que na prática é um certificado de vacina), o qual determina a possibilidade de entrar num café, numa loja de roupa, num autocarro, num avião, circular entre concelhos, freguesias, etc, etc, etc. Na pequena grande mudança em curso, feita em nome da saúde pública e da “casa comum”, o cidadão antes livre verá as suas mais pequenas actividades avaliadas, sendo que o resultado dessa avaliação colocará nas mãos do Estado a determinação da bondade (ou não) das mais pequenas actividades e da bondade (ou não) do dito cidadão. Nos últimos dias, por exemplo, verificámos, por via de um prémio atribuído aos Duques de Sussex, que o número máximo de filhos permitido aos cidadãos bons é dois… mais do que isso, diz quem atribui o prémio ao casal Sussex, é um crime climático… a organização que atribuiu o prémio, a Population Matters, denomina a decisão de limitar o número de filhos de “decisão iluminada” (sic)…

Não deixa de ser incrível (e triste) que tal transformação da forma como vivemos tenha ocorrido em tão pouco espaço de tempo e tenha sido tornada pública: desde idiotas como Mariana Mazzucato, a organizações obscuras como o Fórum Económico Mundial, todos falaram e escreveram sobre isto sem nunca esconderem ao que vinham. Esta transparência teve o benefício de podermos falar sobre o assunto sem sermos acusados de “teóricos da conspiração”. Contudo, a simplicidade do que está a ser feito, e a forma como tal mudança ocorreu sem grande oposição, leva-me a acreditar que já não temos um problema de educação da população e das classes que nos pastoreiam. Temos sim um problema de idiotice generalizada. Porque só um verdadeiro idiota vê na introdução de certificados digitais de identificação condicionantes da circulação dentro do próprio território, ou na limitação do consumo de carne, algo positivo. E só um verdadeiro idiota não verifica que já fizemos isto antes, sempre em nome de “bens maiores”, e sempre com o mesmo resultado: a ditadura. Mas os idiotas de serviço não identificam nisto uma ditadura porque infelizmente não compreenderam quais foram os “pequenos pormenores” que nos permitiam viver em liberdade…