Não me lembro do nome do atleta, mas a história ficou-me sempre como o sintoma de que uma forma qualquer de humanidade tinha mudado para sempre. Na véspera de uma final olímpica, um australiano, favorito à vitória, perdeu o pai. Colocou-se a hipótese de desistir, toda a comitiva lhe deu espaço para isso, mas ele decidiu continuar. Pelo pai, por ele mesmo, pela Austrália. No dia, ele não ganhou, mas chegou em terceiro. Não levava o ouro, ficava com o bronze. Cortou a meta de lágrimas nos olhos, só ele e os deuses. Subiria ao pódio, teria a bandeira por trás, olharia o céu ou o chão, como quisesse ou se sentisse capaz. Mas, instantes depois, no mundo paralelo das redes sociais, já se tinha escrito de tudo: que ele era um fracasso, que estava acabado, nem devia ter corrido, medalha de bronze?, o pai teria vergonha dele.
Não sei se foram as redes sociais, então apenas na infância, os jogos de computador, a televisão, toda a forma de realidade virtual, o conforto em geral de uma sociedade que atingiu o zénite do conforto e da segurança, aquele em que se queixa de ter de ficar no sofá enquanto alguém resolve o problema de um vírus mortal que circula pelo mundo, e que, portanto, naturalmente, a seguir tinha de começar a cair. Penso que é nessa queda vertiginosa que nos encontramos hoje, a meio dela, apenas. Mas sei que, naquele dia, me ficou claro que tínhamos começado a perder a capacidade da empatia – e que nada se avistava no horizonte que nos pudesse fazê-la recuperar tão cedo.
Por estarmos longe, por não vermos o efeito das nossas palavras na expressão do rosto do outro, por estarmos anestesiados de tantas histórias e imagens com que nos bombardeamos ou, hoje, por já nem sabermos distinguir o verdadeiro do falso, o mais frágil dos indivíduos consegue tornar-se no mais perigoso, no mais contundente, no mais frio dos juízes. Julgamos acontecimentos, pessoas, vidas, culturas e épocas inteiras, em poucos segundos – e sentenciamos a seguir, como se fôssemos biologicamente obrigados a dar uma opinião sobre tudo, sob pena de deixar de existir, caso nos entreguemos à insignificância de ficar em silêncio. O julgamento, esse, é frequentemente uma condenação ao degredo, ou tentativa disso, dos que temos por pecadores, rejubilando com a sensação de poder que, subitamente, nos deixaram nas mãos. Nietzsche explica.
No nosso cinismo, no nosso relativismo de quem julga que tudo leu e tudo sabe, no moralismo enervante em que caímos depois de ter abatido todas as autoridades morais, e, finalmente, na absurda guerra de trincheiras armada em ideológica para que tombámos talvez de forma fatal, perante os acontecimentos dos últimos dias em Israel e na Palestina conseguimos ficar entretidos a apontar o dedo. Em vez de ajudar, chorar ou, ao menos, ficar calados. O Hamas matou à traição centenas de civis, assassinou famílias inteiras, raptou idosos e crianças, e a primeira reacção de meio mundo bem sentado longe de tudo foi dizer “ah, mas Israel”. Se estivessem ali, nas redondezas, talvez tivessem entrado nas casas, com cuidado para não sujar as sapatilhas de marca nos rastos de sangue, na esperança de ainda encontrar alguém vivo para os ouvir dizer: “epá, lamento imenso, mas sabe? A culpa foi vossa”.
A estes puros, a estes adiantados mentais armados de conhecimento e ética que, aparentemente sem se aperceberem, dão cobertura aos mais sanguinários ditadores e respetivos acólitos do nosso tempo de vida, importa mais debitar a sua razão do que qualquer espécie de compaixão pelo próximo. Importa a guerra de palavras, porque não estão debaixo da guerra real. Importa aliviar a má consciência de viverem e gozarem de todos os privilégios de viverem na sociedade criada e protegida pelos mesmos regimes e instituições que passam a vida a atacar: a liberdade de expressão, a democracia, a separação de poderes, o direito internacional – até a marca das sapatilhas. O mesmo sucedera já na Ucrânia, mesmo que de forma mais envergonhada – e, fazendo um exercício de memória um pouco maior, já no 11 de Setembro (e com esse dado, ilibamos, definitivamente, as redes sociais, que então ainda não existiam, da autoria moral da queda. Não serão mais do que ferramentas, perigosas, mas dependentes da mão que as manipular).
De resto, a partir do primeiro “ah, mas”, já não há nada que se possa fazer. Ficamos à mesa a esgrimir contextos, atenuantes, justificações, contradições. À mesa, no mural da rede social, na caixa de comentários do jornal, na televisão. O importante é desmascarar a pretensa agenda escondida do outro, a geopolítica, os interesses. Acharmos, firmemente, que somos os bons contra os maus (que idade julgamos que temos, afinal?).
Enquanto isso, no terreno, Israel deixa uma população inteira à fome, à sede e sem medicamentos, o Hamas publicita os vídeos das suas torturas para disseminar o ódio em que medram todos os movimentos terroristas, um míssil faz explodir um hospital e mata 500 pessoas, esquecemos a Ucrânia e, antes dela, as guerras que a Ucrânia já nos tinha feito esquecer, e nos tornamos, todos, todos os dias, notícia após notícia, comentário após comentário, ainda um pouco mais indiferentes, ainda mais odiados e odiosos, ainda mais desumanos.
Se não vamos pegar numa arma nem correr para salvar a vida de alguém, porque é que, ao menos, não mostramos algum respeito pelas vítimas e nos calamos? Seria um bom primeiro passo para reaprendemos a ouvir. E a sentir algo mais do que os apetites da nossa formidável soberba.