Quando se deslocou à China para conversar com Mao, Kissinger deu iniciou ao que ficou conhecido por ‘triângulo diplomático’. Através deste os EUA falavam com Moscovo e Pequim e os dirigentes dos dois países comunistas competiam entre si pela preferência de Washington. O feito permitiu que os EUA tivessem uma visão mais correcta das diferenças entre os dois regimes comunistas. Ajudou a que fossem mais assertivos na prossecução da sua política externa. Acima de tudo evitou erros futuros como o da guerra no Vietname. Foi este reposicionamento diplomático que ajudou a que a derrocada comunista ocorresse na década seguinte.
Foi também esta vantagem geoestratégica que os EUA (e o Ocidente) perderam neste mês de Fevereiro. Já se sabia que o entendimento entre Putin e Xi Jinping se aprofundou no decorrer dos últimos anos, mas ainda não surgira uma oportunidade para este se tornar tão evidente. Em Janeiro, o ministro dos negócios estrangeiros chinês, Wang Yi, declarou que as preocupações russas com a sua segurança eram legítimas. Mais tarde discordou dos EUA quando os norte-americanos afirmaram que os russos estavam a pôr em causa a segurança internacional. Ainda esta semana o embaixador da China nas Nações Unidas acusou os norte-americanos de alimentarem as tensões na Ucrânia e que os planos da NATO ‘vão contra a nossa época’.
Em 1971 a China e os EUA tinham um inimigo comum que era a URSS. Em 2020 os dois aliados são a China e a Rússia e o inimigo são os EUA. Esta importante alteração do equilíbrio internacional não surgiu apenas devido aos erros dos norte-americanos e europeus. Estes existiram, é certo, e o alargamento a leste da NATO e da UE não teve em conta realidades geoestratégicas que não se apagam de um dia para o outro. Em 1989 Kissinger propôs a George Bush um plano de liberalização da Europa de Leste que não explorasse nem ferisse a segurança soviética. Esse plano não foi aceite porque Kissinger fizera das suas a Bush e este tinha contas a ajustar com Kissinger. Mas também devido à derrocada repentina da URSS que surpreendeu até os ocidentais mais informados. O que não devemos esquecer é que há outras realidades a ter em conta, como a geografia, a história e as esferas de influência de cada potência. A força que cada potência projecta para fora das suas fronteiras independentemente das vontades em sentido contrário.
Esta alteração internacional ocorreu porque a URSS caiu. Outra razão foi o desenvolvimento da China que a permitiu tornar-se numa potência que se quer expandir. Neste ponto o confronto com os EUA é perfeitamente natural. No final do século XX os EUA tornaram-se numa potência de tal forma poderosa que China e Rússia perceberam que tinham de se entender para construírem um novo equilíbrio. Na década de 70 China e URSS suspeitavam mais um do outro que dos EUA. Actualmente os EUA passaram ser o inimigo comum da China e da Rússia.
A crise da Ucrânia deve ser lida de acordo com esta nova realidade. Tal como a possível futura invasão de Taiwan pela China. Independentemente da repugnância que o regime e os métodos de Putin nos provoquem, o papel dos governos ocidentais não é o de simplesmente se indignarem mas, de forma pragmática, se prepararem para o que aí vem. O que é que o Ocidente deve fazer para perder o mínimo possível com a ascensão da China e da Rússia? Como é que os países ocidentais se devem posicionar e o que devem fazer para ganharem margem de manobra, dependerem o menos possível da China e da Rússia? São estas as questões que devem ser analisadas.
Quando foi a Pequim em 1971 Kissinger fez uma viagem que muitos há muito desejavam. Esta ainda não tivera lugar porque os motivos e a oportunidade só se juntaram naquele ano. Os equilíbrios de poder fazem-se e desfazem-se. Por vezes levam muito anos para mudar. O importante é que os governos estejam prontos para agirem logo que a oportunidade surja.