1 Um senador do PSD certamente cansado – ou pior ? – de me ouvir dizer que o seu partido fazia um erro nestas eleições ao não ter constituído e liderado uma ampla frente eleitoral do centro à direita, mandou-me um sms – muito cordial, de resto. Onde me detalhava com cópia de pormenores e a paciência de um professor as razões: o CDS era “uma inexistência eleitoral”, com um líder “sem qualquer credibilidade na opinião pública”. Comecei por estranhar a evocação da opinião pública como argumento político dada a persistente confusão entre opinião pública e publicada. A primeira torna difícil que se argumente com ela por falta de dados fiáveis; a segunda, é quase invariavelmente fabricada pelo ar do tempo, a espuma dos dias, a aparência das coisas. Ou o acessório que nunca é essencial.

Depois também estranhei que o generoso sms do meu interlocutor quase só se focasse no CDS e quase nada nesta estreia no PSD: a escolha -determinada e convicta do “centro” como ponto cardial, dali não se arredando pé. (E não é certamente o “estado” do CDS que sozinho pode explicar a escolha.) Desde que eu me lembro, de Sá Carneiro a Passos Coelho, julgo ser a primeira vez que um líder do PSD assim age: o “centro”, como lugar fixo (que não é o mesmo que lugar reservado porque pode já lá estar António Costa), preferindo soltar toda a direita, à sua direita – dando-lhe espaço, vitaminas e fôlego – a juntá-la.

2 Foi uma mudança de identidade. Não “se” terá dado muito por ela porque o PSD nunca usou cartão de identidade claro – sempre lá couberam conservadores, sociais democratas, ateus, católicos, maçons, liberais, sociais-cristãos, com as vantagens e desvantagens dessa singular “natureza” politica. Onde o PSD costumava ser o motor de arranque de coligações ou frentes eleitorais que inspirava e liderava, abertas ao seu centro direita e ao seu centro esquerda, que agregavam, ampliavam, revitalizavam, esperançavam. Seduzindo o voto útil. Propiciando a criação daquele “momento” político que de repente transporta e anuncia uma mudança. Rui Rio não quis fazê-lo, está no seu pleníssimo direito, é o chefe das tropas, ganhou três batalhas internas, não se saiu mal das recentes autárquicas. E é sobretudo um maratonista. Ancorou num “lugar” para o qual considera que muitos irão convergir. Não sei se a estratégia cortará a meta em primeiro lugar; ignoro se o que pode estar em curso não será afinal a “agregação” do indisfarçável cansaço disseminado na sociedade portuguesa ; não sei o que Rui Rio fará da vitória se a tiver e como a ira gerir. Sei que um dos factos políticos mais interessantes (o mais interessante?) da corrida 2022 é precisamente o caso Rio. O maratonista Rui Rio.

3 As histórias contam-se desde o princípio: foi sob a liderança de Rui Rio no PSD que a Iniciativa Liberal, a Aliança e o Chega viram a luz do dia. É um facto político e não uma constatação.

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Ou seja, as sementes que o actual líder do PSD foi deitando á terra – pouco apreço e pouca convergência com o espaço à sua direita – e o modo como durante três anos ia adubando esse o solo, originaram três partos partidários, no espaço à sua direita. Pego no Chega, é o meu ponto aqui. Dir-se-á que era uma questão de tempo. Ou que os dias estão hoje para populismos e extremismo. Talvez: há quem se sinta indefeso perante a vida, angustiado face ao futuro e ressentido com isso. Há. Proponho porém um exercício: se olharmos as coisas como elas foram no tempo de Pedro Passos Coelho, seria muito mais expectável ou pelo menos mais verosímil que tal “erupção” populista tivesse ocorrido nesse duríssimo tempo político-partidário. Mas não: apesar dos tremendos sacrifícios impostos aos portugueses pela irresponsabilidade da herança socialista, o então primeiro ministro saiu incólume: o populismo não teve lugar. Nenhum populista que hoje beija o chão que Ventura pisa encontraria eco e guarida no tempo da coligação PSD/CDS. Apesar da rudeza e aspereza daqueles anos, do implacável cerco da troika, das esquerdas, da media e da direita beta (a das salas), a natureza da liderança política do então primeiro ministro nunca, como dizer?, propiciou o crescimento das sementes do extremismo populista. Ou não existiam, ou ele tomou conta delas, adubando-as de outro modo.

Face ao ponto a que as coisas chegaram e ao ponto a que podem vir a chegar, não seria má ideia acrescentar à história governativa (a verdadeira) de Passos Coelho – contas certas, um país a crescer, dispensa da última tranche do empréstimo, inexistência de um segundo resgate e umas eleições ganhas — acrescentar, dizia, um lembrete que dissesse “o populismo não entrou em cena, extremismos só houve de um lado”.

O mesmo de sempre.

4 Nunca percebi que ninguém no país revele estranheza, se interrogue, se manifeste, ironize, se indigne, com o facto de as extremas esquerdas serem levadas ao colo com carinhoso desvelo por quase toda a media e a extrema direita só apanhe porrada. As primeiras são imaculadamente levadas a sério e tidas como democráticas (sem aspas), a outra escorraçada do seu direito de cidade. Pertencer á extrema esquerda deve ser tão natural como respirar, citá-la é obrigatório, frequentá-la é uma honra. Falar “de” ou “com” a extrema direita apela á perseguição e impõe denúncia nacional. Uma obsessão que tendo-se tornado um tique, impede, isso sim, um mínimo de racionalidade na análise, no julgamento, na apreciação política de alguém ou de algum programa. Não evoco a falta dos serviços mínimos da seriedade intelectual (é lá com eles) apenas lembro que a política detesta a irracionalidade.

Como se explica politicamente que se deva gritar de raiva sobre uma fictícia ameaça de “prisão perpetua” — que nunca veria a luz do dia, qual o governante que consagraria aquilo em lei? — e que não se conheça nem um som sobre os detidos que jazem esquecidos e de vez nas masmorras de ditadores populistas, aplaudidos, citados e seguidos (Venezuela)? Ou sobre as vitimas de ditadores de aço, como o jornalista da Bielorrússia, obrigado recentemente a sair de um avião em escala não prevista nesse voo e até hoje metido numa cela sem que pareça haver rasto dele?

Silêncios bem sucedidos aparentemente.

Para quem se presta a eles tão docilmente, não admira.