Na natureza, há substâncias, organismos e fenómenos cuja expressão é circunstancial. Quando envolvidos na fisiologia humana ou nas condições ambientais às quais somos, física e socialmente, mais sensíveis, alguns manifestam, de um modo implacável, a sua condição dupla. Outros, como pais austeros, usam métodos espartanos, dos quais colhemos benefícios futuros. Radiação electromagnética, moléculas orgânicas e inorgânicas, bactérias, vírus, recursos energéticos; praticamente todos os domínios naturais têm propriedades que, no diálogo com a nossa espécie, mostram uma multiplicidade de efeitos contraditórios. Vejamos alguns exemplos.

A radiação ultravioleta é um manancial de vitamina D, e, simultaneamente, a principal causa dos melanomas e carcinomas de pele. O ozono, que na estratosfera serve de escudo contra os ultravioletas mais letais, converte-se, na troposfera, em veneno para os pulmões. Os rinovírus, responsáveis pelas constipações e ataques de asma, deixam-nos prostrados, em média, um ano das nossas vidas, e têm-se furtado ao esforço balizador das vacinas. Não obstante, muitos cientistas estão convictos de que as crianças que adoecem com bactérias e vírus relativamente inofensivos, como os rinovírus, desenvolvem, mais tarde, uma maior resistência a diversos transtornos imunitários. A natureza é complexa e deve estar isenta de juízos de valor.

A técnica é um exercício de poder sobre a natureza, mas como nem sempre consegue domesticá-la e atenuar a dualidade dos fenómenos, é com frequência que incorpora riscos fisiológicos e sociais. Nalguns casos, as ameaças são evidentes: a energia nuclear, desde o princípio do seu desenvolvimento prático, fez saltar todos os alarmes. Noutras invenções, os perigos escondem-se por detrás da popularidade, para lá das fronteiras do conhecimento humano, ou até entre receios sem fundamento que desviam a atenção dos verdadeiros riscos. A descoberta e aplicação dos raios X ao diagnóstico médico são exemplares da dificuldade em discriminar, no advento de uma ferramenta técnica, os seus efeitos secundários.

O primeiro cientista a estudar os raios X foi o alemão Wilhelm Röntgen. Na noite de 22 de Dezembro de 1895, Röntgen expôs uma chapa fotográfica durante quinze minutos a uma fonte de radiação X. Sobre a chapa, estava a mão da sua mulher, Anna Bertha. Esta, no momento em que Röntgen lhe mostrou a primeira radiografia da história, terá dito, perturbada pela imagem do seu derradeiro destino, «vi a minha morte». O que Anna não sabia era que, se porventura continuasse a prestar-se às experiências do marido, aquela radiografia tornar-se-ia efectivamente num símbolo da sua morte: os raios X são uma radiação ionizante e a exposição prolongada à sua acção pode causar mutações cancerígenas no ADN das células humanas. Quando a descoberta revolucionária de Röntgen deu entrada nos procedimentos clínicos, desconheciam-se os malefícios; por motivo dessa impreparação, as consequências, para muitos radiologistas e pacientes, foram fatais. Ademais, não foi só na medicina que os raios X tiveram um sucesso quase imediato.

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O fascínio pelos «retratos interiores», como lhes chamou Thomas Mann em A Montanha Mágica (obra que encerra um dos mais contundentes ensaios sobre a imagiologia médica, a doença e a morte), rapidamente extravasou a comunidade científica para adquirir um cunho mais lúdico. A simplicidade dos aparelhos atraiu amadores e profissionais que, tal qual os fotógrafos convencionais, ofereciam os seus serviços a todo o tipo de clientes desejosos de experimentar a novidade, desde amantes que queriam trocar, como lembranças de afecto, radiografias das mãos ou de outras partes do corpo, a donos de animais, que criaram o hábito de pôr radiografias dos seus cães e gatos sobre a lareira.

De pronto surgiram temores a respeito de hipotéticas propriedades da radiografia, bem resumidos num poema publicado em 1896 numa revista de fotografia, que rematava designando-os como «naughty, naughty rays» (em português, raios atrevidos). Hoje pode parecer risível, mas, no final do século XIX, receava-se que fontes de radiação X pudessem ser instaladas em aparelhos portáveis e o seu grau de penetração controlado de forma a devassar a intimidade alheia. Se chegava aos ossos, podia ficar-se pela pele, pensava-se (antes de nos rirmos, devemos recordar os aparelhos de raios X por retrodifusão que operaram nos aeroportos norte-americanos e europeus até 2012).

Os equívocos sobre a nova técnica ficaram registados em alguns episódios caricatos, como o caso do membro da assembleia do condado de Somerset, em New Jersey, que propôs um projecto-lei para proibir a montagem de raios X nos binóculos de teatro, e o da publicidade a roupa interior à prova de radiação. Se se tratou de uma preocupação autêntica, ou se foi apenas uma farsa alimentada pela imprensa para ganhar audiência, é um tema ainda em debate. O certo é que, enquanto tudo isto sucedia, a verdadeira ameaça da radiação de Röntgen quase dizimava uma geração de radiologistas.

A história dos raios X ensina-nos que os malefícios de uma técnica podem estar onde menos se espera. Se, no caso em apreço, a preocupação com os riscos sociais se revelou improcedente, nada nos garante que, noutras situações, não se dê a situação inversa. É com esse cepticismo, sem cair na paranóia, que devemos lidar com qualquer invenção ou descoberta. Afinal, a técnica é ciência aplicada, e o cepticismo e o consenso são, respectivamente, o melhor amigo e o mais obstinado adversário do método científico.

As gerações contemporâneas, criadas num sentimento de exclusividade, acreditam estar a viver o apogeu do progresso. O erro de paralaxe geracional, comum a todas as épocas mas hoje ampliado por um sistema educativo que substituiu o ensino da História por um ajuste de contas com o passado, acarreta alguns problemas. Como disse Martin Amis, «quando o passado está esquecido, o presente é inesquecível». Em outras palavras, o deslumbramento com as ferramentas modernas pode impedir-nos de ver o que se ergue nas sombras do quadro completo, e se não devemos nunca menosprezar o poder da criatividade humana na resolução dos problemas mais complicados, também convém não perder de vista a sinistra propensão do Homem para oprimir o Homem com os mesmos instrumentos de progresso.

O exagero nos louvores ao tempo em que vivemos não significa que algumas criações recentes estejam desprovidas de potencial transformador. Entende-se como inovação transformadora aquela que define um novo sistema, um outro espaço de conceitos, que dificilmente poderia ser construído por um processo incremental. A radiografia, por exemplo, foi uma invenção transformadora (que, avaliados os custos e os ganhos, pendeu claramente para o bem). O telefone inteligente é, na aparência, uma inovação incremental que, enriquecida sucessivamente com novas ferramentas, cada vez mais poderosas, vem adquirindo um carácter, se não transformador, pelo menos disruptivo. Terá, certamente, as suas vantagens. Resta saber se, na contabilidade dos benefícios e malefícios, o saldo será positivo.

Os telefones inteligentes combinam a capacidade de computação actual com a rede de informação disponibilizada pela internet, a inteligência artificial e distribuída, e o paradigma de comunicação inaugurado pela primeira geração de telemóveis. Há, nesta amálgama de técnicas e ideias, uma que deve ser examinada com particular atenção: a computação distribuída.

Os sistemas de computação distribuída assentam num conjunto de unidades de processamento que operam simultaneamente para produzir conhecimento a partir de informação. Pode ser um computador com diversos processadores ou um sistema partilhado pela rede de comunicação móvel, em que cada aparelho é uma unidade que pode comunicar com as outras. Os sistemas distribuídos massivos e bem desenhados são robustos: uma avaria num dos nós pouco ou nada afecta o desempenho do sistema. Mais do que uma técnica, é um conceito que se oferece a muitas analogias com a sociedade humana.

A quinta geração de internet móvel (5G) veio aumentar substancialmente o poder de processamento das unidades de comunicação. Com a 5G e a parafernália de algoritmos de inteligência artificial criados nas últimas décadas, a computação distribuída ganha um novo impulso. O totalitarismo digital também. Integrados numa rede global de aparelhos, sensores e técnicas intrusivas, os telefones inteligentes e outras ferramentas digitais ameaçam transformar-se no pior pesadelo das sociedades abertas. O perigo da inteligência artificial não vem dos robôs assassinos nem das máquinas conscientes inventadas em Hollywood. Chega-nos da adesão indiscriminada às promessas de conforto, eficiência e segurança que nos trazem as redes de comunicação móvel.

Basta agora um sobressalto, uma inquietação, uma incerteza momentânea para desencadear um processo imparável de submissão voluntária. O sacrifício da privacidade no altar da segurança é iminente, se é que não ocorreu já. Assustados e submetidos à vigilância, não só do poder, como também dos pares, abriremos a porta a um novo tipo de sistema distribuído, em que cada utilizador e unidade móvel serão, juntos, e ainda que sem intenção, uma ferramenta de patrulhamento e repressão. Tal sistema, ao herdar as propriedades robustas da computação distribuída, esquivar-se-á às estratégias de resistência convencionais.

Os déspotas de amanhã, e alguns do presente – quem seria capaz de reconhecer o ditador chinês na rua? –, não terão o rosto estampado nas camisolas de adolescentes e adultos imaturos. Serão os burocratas anónimos, os cidadãos diligentes, os operários das novas técnicas digitais, os vizinhos invejosos ou amedrontados, e todos aqueles que, quer queiram, quer não, estiverem na posse de uma engenhoca digital. A repressão distribuída dispensa um chefe carismático para unir as pessoas sob o logro do bem comum; basta uma rede auto-organizada de inclusão e exclusão, gerida e vigiada por todos através de um enxame de aparelhos. Citando uma velha canção falada, a revolução digital não será televisionada, mas será, muito provavelmente, decidida, solicitada e exercida em banda larga. Se isso acontecer, talvez então compreendamos melhor a frase lapidar proferida por Snake Plissken logo após desligar a energia eléctrica da Terra e acender um cigarro American Spirit: «bem-vindos à raça humana».