Paulo Portas sempre teve uma irresistível atração por frases de efeito. Este domingo, no seu programa de comentário na TVI, tirou mais uma do bolso do casaco. A frase foi esta, sobre as relações entre Portugal e Angola depois do processo judicial que envolveu Manuel Vicente: “Há uns doutores em virtude — e a gente não sabe que universidade é que os doutorou em virtude — que têm uma teoria específica de que Portugal deve cortar relações com todos os sistemas que não sejam iguaizinhos aos nossos”.
Eu também não sei que universidade é essa que distribui “doutoramentos em virtude”, mas sinceramente espero que não seja a mesma onde Paulo Portas tirou o seu doutoramento em memória. Há muitos anos, quando era um modesto director do jornal O Independente, Portas chamou a José Eduardo dos Santos “farsante” e “ditador antigo”, acusando-o da autoria de “uma sucessão de mentirolas, truques e maquilhagens” e de não ser “um senhor respeitável”. Noutra altura, escreveu: “Vamos ser claros. Eu tenho um respeito histórico por Jonas Savimbi que nunca tive nem terei por José Eduardo dos Santos”.
Quem ouve hoje Paulo Portas percebe que, afinal, ele é MPLA desde pequenino — e que onde antes via “farsantes” descortina agora senhores respeitabilíssimos.
Para sermos sinceros, não é uma evolução surpreendente. Afinal, Paulo Portas conseguiu desiludir sempre. Aos que queriam um jornalista, saiu-lhes um político; aos que queriam um político, saiu-lhes um homem de negócios. É o Princípio de Paulo, uma espécie de Princípio de Peter que em vez de ser aplicado à falta de competência é aplicado à falta de coerência.
Ao usar aquela frase na TVI, Paulo Portas criou, como se vê, um problema com as suas próprias ideias, passadas e presentes. Mas há pior: é que, além disso, criou também um problema com as ideias dos outros. Ao contrário do que insinua Portas, os críticos das actuais relações entre Lisboa e Luanda não querem que o regime angolano seja “igualzinho ao nosso” — querem, apenas, que o nosso regime não seja igualzinho ao deles. Ninguém aspira a pôr São Bento no Futungo de Belas — mas também não ponham o Futungo de Belas em São Bento.
O exemplo em causa, relativo ao processo do ex-vice-Presidente de Angola, é perfeito porque trata da importância da separação de poderes e da independência dos tribunais. Num regime democrático, como aquele que pretendemos ser, as coisas passam-se de forma muito simples: os políticos não se metem com os juízes; e os juízes decidem o que entendem.
O que se passou em Portugal com o caso Manuel Vicente desafiou isso. O Presidente da República e o primeiro-ministro fizeram saber, de forma pública, sonora e antecipada, que o superior interesse do país implicava uma determinada decisão judicial. E, quando ela chegou, não esconderam a sua histérica satisfação por terem dado mais importância a um saco cheio de kwanzas do que a um princípio constitucional.
Nos últimos anos, a enchente de dinheiro da oligarquia angolana introduziu uma perigosa perversão na democracia portuguesa. Os políticos transigiram, os banqueiros facturaram, os jornais abanaram e alguns agentes da justiça capitularam. Foi um preço demasiado alto, mas Paulo Portas acha que devemos continuar a pagá-lo. Até usa o derradeiro argumento dos homens do dinheiro: a fragilização da nossa democracia justifica-se, supostamente, pela defesa dos portugueses que trabalham em Angola e das empresas que trabalham com Angola. Os fracos sempre serviram de escudo à realpolitik.
Apesar de tudo isto, a oligarquia angolana e o ex-jornalista e ex-político não se confundem de forma absoluta. Afinal, o MPLA é marxista, escola Karl; enquanto Paulo Portas, como diz uma piada antiga, é marxista, escola Groucho: “Estes são os meus princípios. Se não lhes agrada, tenho outros”. João Lourenço já sabe, portanto, o que o espera quando o vento mudar (como inevitavelmente mudará).
Não que trocar de opinião seja um pecado sem remissão. Mas convém, apesar de tudo, que a mudança da opinião não acompanhe, com excessiva fidelidade, a mudança dos interesses.
Para alguém que, como eu, há muitos, muitos anos, numa galáxia distante, começou pela primeira vez a olhar para o jornalismo com os artigos de um semanário apropriadamente chamado O Independente, esta radical transformação de Paulo Portas podia ser uma desilusão — mas, na realidade, é apenas uma confirmação.