Se antes era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas “O Sol da Humanidade”, “O futuro radioso da Humanidade”, o “Paraíso Terrestre”, etc., hoje Vladimir Putin acha-se no direito de apresentar o seu país como o baluarte das liberdades e o defensor dos princípios tradicionais. Na História da Rússia, estas ideias messiânicas nunca deram bons resultados e os desastres podem repetir-se.
Nos últimos anos, principalmente depois da invasão da Ucrânia pelas tropas russas a 24 de Fevereiro, o ditador russo tenta-se apresentar como o salvador da humanidade, produzindo discursos e decretos cada vez mais semelhantes a encíclicas papais, mas pouco convincentes. Como será possível levar ao mundo princípios e conceitos que são espezinhados diariamente na Rússia?
Por exemplo, a 5 de Setembro, dia em que um tribunal de Moscovo condenou o jornalista russo, Ivan Safronov, especialista em questões militares, a 22 anos de prisão por “alta traição” e outra “fábrica da justiça” proibiu a publicação do jornal da oposição Novaya Gazeta, o ditador Vladimir Putin decidiu publicar “A concepção da política humanitária da Federação da Rússia no estrangeiro”.
Sublinho “no estrangeiro”, porque na Rússia corre tudo às mil maravilhas.
Um dos objectivos deste “sábio documento” visa “a formação da ideia da Rússia como um estado que preserva cuidadosamente a sua rica história e herança cultural … e em que a vida sociocultural se desenvolve dinamicamente nas condições de … pluralismo de opiniões, ausência de restrições de censura”.
Os exemplos acima citados são apenas dois exemplos de muitas centenas de acções repressivas na Rússia, que vão desde a existência de centenas de presos políticos ao assassinato de líderes da oposição, passando pela imposição de uma impiedosa censura. Como será possível “vender” no estrangeiro a imagem desejada por Putin?
Também não consigo compreender que “história e herança cultural” Putin irá apregoar se elas são quase revistas diariamente ao sabor das descobertas ideológicas do ditador. No campo da história, provavelmente será a última versão revista por ele, de onde desaparecerão nações e povos inteiros, teorias delirantes como aquela de que “a Rússia nunca invadiu outro país”, etc.
No campo da herança cultural, as proibições dos concertos e actuações de músicos e actores que ousam protestar contra a invasão da Ucrânia pelas tropas russas. O último exemplo é o da proibição do concerto da pianista mundialmente famosa, Polina Ossetinskaya, em São Petersburgo no dia 3 de Setembro.
Outros dos grandes princípios que o Kremlin irá vender serão “o apego aos princípios da igualdade, da justiça, da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados… o reconhecimento da identidade nacional e cultural”.
Aqui, verdade seja dita, Putin tem conseguido algum êxito, principalmente na propagação do princípio da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, ou melhor, na venda da imagem que o seu país não se ingere nos assuntos dos outros, levando até alguns a acreditar que foi a Ucrânia que começou a guerra contra a Rússia, e não o contrário.
O discurso de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP no final da Festa do Avante, é um eco dessa propaganda putinista: “A escalada da guerra na Ucrânia e a espiral de sanções impostas pelos Estados Unidos da América, a União Europeia e a NATO, com a cumplicidade do Governo português, são indissociáveis da desenfreada especulação e aumento dos preços da energia, dos alimentos e de outros bens de primeira necessidade, do ataque às condições de vida dos povos, arrastando o mundo para uma ainda mais grave situação económica e social”.
Claro que não é Putin e os seus falcões que atiçam a guerra na Ucrânia, que matam milhares de pessoas e destroem aldeias, vilas e cidades. Não, o que está implícito nas palavras acima citadas é que os ucranianos deveriam ter-se rendido e entregue à bondade do Kremlin e que o chamado Ocidente assistisse “impávido e sereno” à carnificina iniciada pelas tropas russas no Leste da Ucrânia em 2014-2015. Isso, segundo os comunistas, é que seria a “paz”.
Outra das grandes missões é que a Rússia quer ser “o guardião e defensor dos valores morais e espirituais, da herança da civilização mundial”. Aqui, alguns dos cantores e artistas que actuaram na Festa do Avante poderão vir a ter sérios problemas se Putin conseguir o seu objectivo.
Penso eu que, a julgar pelo que se passa na Rússia, é perigoso deixar nas mãos de Putin essa tarefa existencial. Prefiro que seja, por exemplo, o Papa de Roma ou o Dalai-Lama a dirigirem a realização de semelhante missão. Mas esta é apenas a minha humilde opinião.