Ao ano já só restam 20 dias, mas parece que são suficientes para encaixar as 47 greves de que os sindicatos da função pública deram aviso. Não haverá um único dia sem paralisações na administração e em empresas públicas: hospitais, prisões, tribunais, câmaras municipais, bombeiros, escolas, etc. É a segunda discussão do Orçamento de Estado: depois dos debates parlamentares, temos agora a “luta”, como gosta de dizer o PCP, grande maestro deste sindicalismo de Estado. No parlamento, segundo o governo, os deputados, se tivessem conseguido aprovar todas as suas propostas, teriam agravado a despesa em 1,9 mil milhões de euros. De que aumento será agora capaz o funcionalismo, utilizando os utentes dos serviços públicos como reféns? Por enquanto, já garantiu o acrescento do seu salário mínimo: para os outros trabalhadores é 580 euros (600 no ano que vem); para os funcionários, 635. Talvez tudo isto espante o cidadão mais desprevenido: como é que, ao fim de três anos de “reposições”, é precisamente a classe mais mimada pela maioria governamental quem mais protesta, mais exige – e mais continua a receber?
Segundo o ministro do Trabalho, tudo se deve às “expectativas de melhorias”. Este é o mundo que António Costa e os seus parceiros parlamentares, PCP e BE, criaram. Durante anos, ensinaram que o rendimento de cada grupo não depende da sua produtividade, mas da sua capacidade de pressão sobre o poder político. Porque é que foram cortados os salários e as pensões mais elevadas entre 2011 e 2015? Porque o país, falido, precisava de diminuir défices e provar a sua credibilidade? Nada disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. E depois de 2015, por que razão foram feitas “reposições”? Porque o ajustamento e a conjuntura permitiram que, desde 2013, a economia crescesse e o país voltasse a financiar-se nos mercados? Nada disso: simplesmente, porque um governo assim o quis. O poder político é a chave de tudo: o grevista quer, o poder cede, e é Natal outra vez.
As greves são, portanto, o mecanismo normal para obter “melhorias” no mundo da geringonça. Um mundo onde o sector público é sagrado, e o privado é somente tolerado. Um mundo onde a criação de riqueza é punida através de impostos, e a “luta” é premiada através da despesa pública. E um mundo onde, naturalmente, sobressaem os funcionários e os empregados das empresas públicas. Nenhuma outra classe tem tanta força, a partir de hospitais, escolas ou empresas de transportes, para infligir incómodo e sofrimento. Quem mais, por exemplo, poderia ameaçar o país com mortes, como no caso da greve dos enfermeiros? E também nenhuma outra classe tem tanta consciência da sua influência, não apenas porque muitos políticos são originários do funcionalismo, mas porque a oligarquia nunca se cansa de lembrar que os funcionários são, em Portugal, o factor decisivo das vitórias eleitorais. Foi aliás como tal que, desde 2015, este governo tratou o funcionalismo. Estamos a seis meses de eleições europeias e a um ano de legislativas. Como esperar que a classe desperdiçasse esta oportunidade para aumentar a sua fatia do bolo (25% da despesa, até ver)? As greves são a maneira de os funcionários obrigarem António Costa a pagar mais pelos seus votos.
Não vale a pena insistir na insensibilidade social ou no egoísmo corporativo. Nada mudará com apelos ao bom senso ou aos bons sentimentos, mas unicamente quando se alterarem as condições que permitem o que os jornalistas chamam, curiosamente, “contestação”. No fundo, são os juros do BCE e o efeito de arrasto da economia europeia, ao disfarçarem o crescimento da dívida pública e o peso da carga fiscal, a verdadeira causa das greves. O mundo que António Costa criou não depende de nós, e esse é o seu principal problema: tal como a estátua de ferro no sonho do profeta, tem os pés de barro.