Por muitas que fossem as dificuldades as famílias encontravam-se no Natal. Partilhavam a mesa, imagem com um significado mais amplo que se vislumbra à primeira vista, mas que estava lá, cumpria o seu papel. Por muitas que fossem as dificuldades havia sempre o encontro da Família. Nada o derrubaria. Até agora.

Para muitos este Natal terá sido passado em isolamento, fechado em quartos, longe dos familiares. Sem sintomas ou ligeiras tosses, febres menos graves que outras noutros tempos. Sinalizados pela DGS (não a deste Marcelo, apesar de a ironia da história ser deliciosa e a seu tempo acabar por fazer o seu papel), milhares que receberam ordens para se isolar aguardam instruções de libertação, devem informar as autoridades com quem estiveram, quem com eles vivem para que estes, devidamente sinalizados, se submetam também aos procedimentos e testes, testes estes que mesmo que duplamente negativos não os libertam, isso apenas o tempo devidamente disposto por alguém através da lei e comunicado por um delegado de saúde que a interpreta e aplica. Se quando estudei Direito se chamasse a isto Estado de Direito, o chumbo seria imediato. Aliás, tal hipótese jamais se punha pois era impensável. Inimaginável.

Ao contrário do que se depreende do discurso de cariz político do sempre optimista António Costa, as notícias que nos chegam lá de fora até são positivas. A nova variante Omicron será mais contagiosa e menos grave. A somar a essa menor gravidade a vacinação de quase toda a população adulta permite que a maior parte dos infectados seja assintomático ou se traduza em febres, dores de cabeça, tosse. Há casos graves, é verdade. Para estes existe a terceira dose da vacina que o governo devia alargar o mais rapidamente possível para os menos de 50 anos. Há mortes, é verdade. Mas, contrariamente ao que se insinua por via do alvoroço dos noticiários da TV, a morte não é um facto novo, um mal descoberto pelos novos tempos. Também estou ciente que o risco da nova variante está em o número dos contágios ser tão elevado que uma baixa percentagem de hospitalizações pode colocar dificuldades na prestação dos cuidados médicos. Bem sei que vivemos perante um equilíbrio difícil e complicado. Este texto é sobre isso. Porque também é verdade que até ao momento a medicina mais eficaz é preventiva e chama-se vacinação. O que não deixa de ser estranho pois o governo que apertou com as restrições, que isola pessoas em casa, que afasta famílias, foi o mesmo que suspendeu a vacinação no período de Natal e deu preferência às crianças sobre os mais velhos. Sentimento de estranheza porque é sabido que as crianças apenas em casos muito, muitíssimo raros são afectadas pela doença e porque ainda há dúvidas sobre os efeitos futuros da vacina em crianças. O governo que é rigoroso em fechar pessoas em casa é o mesmo que relaxa na administração do melhor meio de prevenção e de protecção da pandemia. Alguém que desconheça o PS talvez conclua que há vantagens políticas na manutenção deste novo normal. Felizmente todos conhecemos o PS e temos a certeza que tal não é possível.

Voltando ao tal equilíbrio que temos de ter para que os hospitais não rebentem pelas costuras, este traduz-se num cuidado perfeitamente legítimo e honroso. Mas desenganem-se se acham que esta intrusão do Estado fica por aqui. Actualmente a pandemia é o pretexto para os serviços estatais determinarem quantos testes os infectados com a Covid-19 terão de fazer, quantos dias terão de aguardar para saírem de casa, para estarem com os seus familiares e amigos. Mais tarde, daqui a uns anos ou poucas décadas, outra razão surgirá para o justificar: a salvação do planeta, um interesse nacional qualquer, um inimigo comum. Deixo as possibilidades à vossa imaginação. Porque o problema não é o desafio em si. Não é negar a existência da pandemia, como não é negar o das alterações climáticas. Estas existem como a pandemia existe. O perigo está na forma como respondemos a estes desafios. No modo como estes são aproveitados por oportunistas para imporem as suas perspectivas, a sua agenda política, as suas visões de vida em comunidade, de colocarem um ponto final nas nossas liberdades. De usarem o medo, tantas vezes irracional, para imporem medidas que se dizem urgentes não por serem importantes, mas para que não sejam escrutinadas. O medo foi o argumento de que o uso da razão nos libertou (sem que esqueçamos que a Idade Média foi um período de tolerância). O século das Luzes que tanto admirámos na escola e que não nos cansamos de estudar melhor foi o da inquirição, da pergunta, do questionar, do querer perceber e, por isso, investigar. Do indagar. Não mais o de apontar o dedo a quem ousa fazer diferente. Foi o tempo do poder limitado, dos direitos e liberdades individuais e suas garantias. Foi o nascimento de uma época que se desenvolveu e evoluiu, com os seus tropeções, até aos nossos dias. Esta análise, este risco também deve ser tido em conta quando falamos de equilíbrio.

O Natal de 2020 foi condicionado porque ninguém estava vacinado. Em 2021, com a vacina administrada a praticamente 90% da população, o impensável aconteceu e as restrições mantiveram-se. 2022 inicia-se com o espectro das crianças que não foram vacinadas terem de fazer isolamento contrariamente às que receberam a vacina. Veja-se a deturpação não só do Direito mas da própria Medicina: vacina-se uma criança não pela sua saúde mas para que possa ir à escola. Isto não é ético nem moralmente aceitável. Não pode ser constitucional. É por isso que se temos de ter cuidado com a pandemia para que os hospitais consigam tratar os doentes, teremos também de exigir que o Estado não suspenda o processo de vacinação nem altere prioridades. Acima de tudo temos de não nos esquecer que a liberdade nunca foi garantida. Pelo contrário, perde-se quando menos se espera. Desaparece quando deixamos de lutar por ela.

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