Por estes dias tenho lido ao meu filho quando se deita o ‘Cavaleiro da Dinamarca’. A escrita de Sophia de Mello Breyner Andersen é belíssima, elegante, escorreita, simples e devidamente descritiva. Para que a leitura não se alongue muito combinámos passar por uma cidade de cada vez. Ao terceiro dia chegámos a Florença onde sucedeu algo que me captou a atenção e que é importante para os nossos dias e para o que vivemos actualmente: é que nessa cidade italiana o anfitrião do cavaleiro recebe inúmeras pessoas que ficam na conversa durante horas. O que me despertou a atenção, e impressionou também o cavaleiro, foi que aquelas pessoas falavam de tudo: de filosofia, de ciências, de física, de política, da natureza, de pintura. Conversava-se do passado, do presente e sobre o futuro.

Se a discussão é um exame de uma questão, a conversa pode ser uma tentativa sã em converter o outro. Sã porque quem conversa fala e ouve, e se quando fala quer convencer já quando ouve aceita a possibilidade de ser convencido. Florença era uma cidade rica, mais austera que Veneza (não fosse estar longe do mar), instruída e de olhos postos no futuro porque se conversava; se duvidava, se questionava, se respondia, se explicavam pontos de vista. Porque se escutava.

Quando a presente pandemia surgiu muitos vaticinaram que as democracias seriam o ponto fraco do Ocidente. É verdade que por cá as ordens não se acatam como na China e, por esse motivo, a pandemia propagou-se mais facilmente. Enquanto o governo chinês conteve eficazmente o vírus, nos países ocidentais viveu-se o caos. Na China acataram-se ordens enquanto na Europa e na América duvidou-se, exigiram-se respostas, explicações. As pessoas manifestaram-se ou, se se resignaram fizeram-no contrariadas. Pouco ou nada no Ocidente foi planeado, as economias caíram a pique e foram muitas as vidas que se perderam.

Mas também foi no Ocidente que surgiram as melhores vacinas. Porque, apesar de todas as dúvidas, ou melhor, devido a todas as dúvidas procuraram-se respostas. Estudou-se, investigou-se, fizeram-se perguntas. Os cidadãos quiseram saber e pesaram os prós e os contras de cada decisão governamental. Entretanto, só daqui a muitos anos teremos conhecimento dos horrores vividos na China.

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Vem este texto ao caso devido à relutância inicial da DGS em divulgar o parecer final da Comissão Técnica de Vacinação relativa à administração da vacina da Covid-19 às crianças entre os 5 e os 12 anos de idade. Graça Freitas justificou-se dizendo que o dito parecer é um “documento interno preparatório do processo de decisão” e que “o habitual é não serem divulgados”. Sucede que pandemias como as que vivemos há quase dois anos também não são habituais, como não habitual passarmos por estas incertezas ou ouvirmos a Ordem dos Médicos considerar desproporcionada a vacinação das crianças. Perante tantos pontos de vista tão diversos, o mínimo que se pode exigir é a transparência que advém do conhecimento. Este só se obtém com acesso aos estudos, às investigações, aos pareceres. É preciso que se discuta, se questione, se duvide; não que se empurrem as pessoas para situações em que não têm outra alternativa que não seja desistir de chatear quem decide. Felizmente, o governo acabou por ceder e aceitou divulgar o parecer técnico para que os especialistas o pudessem ler e explicar. Infelizmente, tal aconteceu depois de António Costa ter referido, à laia de autorização, que era favorável à sua divulgação, o que diz muito da nossa Administração Pública em geral e da DGS em particular. Não fazia qualquer sentido agendar para a próxima semana de forma o início da vacinação das primeiras crianças e sujeitar os pais que queiram ser esclarecidos tivessem oito dias para marcar uma consulta com o pediatra do seu filho, médico esse que nem sequer poderia dar grande opinião pois lhe era negado o acesso a documentos científicos sobre um assunto que é a sua especialidade médica e relativamente ao qual deve actuar. Não foi essa a atitude que fez a nossa civilização.

Perante as incertezas que nos assolam há (ou devia haver) um alicerce seguro, permanente que nos afiança que o que era continuará a ser: a dúvida, a discussão, a conversa, o contraponto como melhor garantia de que as nossas escolhas foram as mais ponderadas e não obtidas à sorte, ao acaso. A grande maioria das pessoas acreditou nas vacinas porque estas eram válidas e também necessárias. Adequadas e proporcionadas. Também querem saber se vacinar uma criança que não corre riscos sérios com a contracção da doença Covid-19, que não contagia os outros como um adulto o faz, também é adequado e proporcionado. Não foi a autoridade e a prepotência que salvou vidas. Foi a dúvida e a busca incessante em lhe pôr termo. Fomos nós, os que quisemos saber.

P.S.: no passado fim-de-semana teve lugar no Grémio Literário, em Lisboa, a apresentação de dois livros editados pela Alêtheia. O primeiro foi ‘Milhões a Voar‘ de Carlos Guimarães Pinto e André Pinção Lucas sobre as mentiras que nos contam sobre a TAP. O segundo, ‘Vai Ficar Tudo Mal‘, é uma compilação das crónicas de Carlos M. Fernandes no Observador. Os dois livros são extremamente interessantes não só pelo que dizem, mas porque fazem esse contraponto às narrativas dominantes que se impõem quando não se pergunta. Talvez por isso mesmo as respectivas apresentações foram tão boas. Além de António Costa, director do Eco, e de Helena Matos, colunista do Observador, os livros foram apresentados por mais duas pessoas que se encontram fora da área política dos respectivos autores. Nem Susana Peralta é liberal nem Sérgio Sousa Pinto concordará com as conclusões do Carlos M. Fernandes. Mas os dois estiveram lá, teceram louvores, falaram, ouviram, responderam a perguntas. Aceitaram cumprimentos e receberam elogios. Num tempo de intolerância mental foi saudável, por uma tarde, viver outra vez numa bolha de normalidade. Neste sentido os que lá estiveram mereceram o lugar onde se encontravam.