A noite do primeiro Natal, segundo os códices mais antigos, também ocorreu em estado de decreto, após o édito de César Augusto para recenseamento de todos os habitantes do Império. Aquela noite de Inverno viria a dividir os séculos, antes e depois dela, entre “passado que não existe mais e futuro que ainda não chegou” (Agostinho, Confissões). Nesta época de pandemia, o coronavírus alterou de tal forma o curso dos dias, que o tempo, inexoravelmente, não mais será o mesmo – sem dúvida haverá também um antes e um depois.

Depois de Cristo, na Era da Técnica e da Informática, já não se enviam postais de Natal, primorosamente ilustrados, no verso dos quais desenhávamos, com letra cursiva e caligrafia irrepreensível, votos cordiais de boas festas. Mais dificilmente desencantaremos tempo, entre os preparativos da consoada e o embrulho dos presentes, para compor a extensa prosa de uma carta. Felizmente, as novas tecnologias, – computadores e telemóveis – libertaram o homem da morosa tarefa epistolar.

Não era assim no século XIX, quando Eça de Queirós (1845-1900), a quem o Parlamento pondera conceder honras de Panteão Nacional, desempenhava funções diplomáticas em Inglaterra. Chegado a terras de Sua Majestade, confessava por carta a Ramalho Ortigão, a sua dificuldade em adaptar-se ao estilo de vida britânico: “Aqui tudo tem spleen: o céu, as almas, as paredes”. Durante o seu confinamento em Inglaterra, lamentava que a sua vida se limitasse a “comer e fazer prosa”. Seria, porém, entre esta “espessa atmosfera de fumo, penetrada de um frio húmido” que escreveria as páginas criativas da sua produção literária, incluindo aquela que é considerada a sua obra-prima, Os Maias (1888).

Deste período, data também a redação de um conjunto de crónicas, as Cartas de Inglaterra, enviadas, por correspondência, para diversos jornais.  Nessa coletânea de textos jornalísticos, Eça comenta e critica, com implacável ironia, os acontecimentos da época. Nos dias que correm, apesar de já não se escreverem cartas, as Cartas de Inglaterra, publicadas durante aquele que foi o Brexit de Eça de Queirós, surpreenderão os leitores, ao abordar questões que permanecem atuais: intrigas políticas, crises financeiras, aumento de impostos, desigualdades sociais, moda, consumismo, desemprego, discriminação racial, conflitos armados e o progresso científico (inclusivamente, imagine-se, a eficácia das vacinas que, na época, se juntavam às fileiras do combate às doenças infeciosas).

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Uma dessas crónicas tem, como título, O Natal e é uma pintura queirosiana, em tons realistas, irónicos e contrastantes, da quadra natalícia em Inglaterra, no mesmo ano da publicação d’ Os Maias. Em O Natal, Eça recorda a antítese insuperável que persiste entre ricos e pobres; entre as “ceias faustosas” com “toda a sorte de coisas boas, peças de carne, vinho, queijos” e a fome e o frio de quem “regela e de quem rilha, a um canto triste, uma côdea de dois dias”. A crítica que dirige à sociedade vitoriana é, por vezes, de tal modo demolidora, que se desmorona num pessimismo derrotista de um escritor que, mais tarde, ingressaria num grupo de Vencidos da Vida.

Em 2020, ano de pandemia, as palavras que introduzem o texto continuam, lamentavelmente atuais: “O Natal (…) foi este ano triste”.  Sem beijos, sem abraços, sem coros, nas ruas e nas igrejas, entoando cânticos de Natal. Não havia, para os familiares distantes lugar na hospedaria. Longe da vista, estavam, porém, próximos do coração e os encontros foram à distância, fosse por Zoom ou por Skype. Lamentavelmente, a covid-19 continua a alastrar nas ruas, a invadir as casas, a afastar pessoas próximas. Os hospitais estão sobrelotados, os profissionais de saúde exaustos; os restaurantes e as lojas vazias, os comerciantes a fechar portas.

O Natal, este ano, foi em casa. Eça de Queirós apressar-se-ia a acrescentar, ironicamente, que “resta a consolação de que os pobres tiveram menos frio”, o que, mais uma vez, não é provável. Nesse aspeto, talvez as coisas não tenham mudado assim tanto, apesar de já não se escreverem cartas.