É um dos livros mais populares da cultura ocidental. Publicado em 1865 por Charles Lutwidge Dodgson, sob o pseudónimo de Lewis Carroll, conta a história de uma menina chamada Alice que, caindo numa toca de coelho, chega a um mundo subterrâneo fantástico. A história que encanta os mais novos e os mais velhos é considerada um dos melhores exemplos da literatura de nonsense ou do absurdo: o mundo subterrâneo desafia as regras da lógica e exercita a ordem do fantástico, e tudo o que devia parecer estranho é assumido como normal.
Em muitos sentidos, Portugal parece-se com o país das maravilhas de Alice. Vivemos rodeados do absurdo mas a maioria da população comporta-se como se tudo estivesse bem. Trata-se de um mecanismo de defesa habilidoso e que o domínio da psicologia das emoções tem explorado. Estudos indicam que o cérebro não distingue entre fantasia e realidade: se imaginarmos estar a tocar piano despertamos no cérebro as mesmas áreas ativadas por uma pessoa que está efetivamente a tocar piano. As potencialidades daqui resultantes são enormes: com recurso a meditação, podemos trabalhar as nossas emoções para superar desafios pessoais, fantasiando um estado de espírito prazeroso e transformando as nossas condições mentais em estados mais positivos. Mas uma ferramenta individual de grande utilidade pode transformar-se numa perigosa estratégia se for adotada coletivamente. Na verdade, quando a maioria da população de um país prefere acreditar que tudo está bem quando não está, as consequências podem ser desastrosas.
No caso português, podemos utilizar dois exemplos para demonstrar este uso. É dominante no discurso público a ideia de que o SNS foi capaz de lidar com o desafio convocado pela pandemia da Covid-19 e de que nada falta ou falhou, pelo que pudemos até prescindir do contributo do setor privado. Trata-se de uma estratégia de fantasia a que recorreram o primeiro-ministro e todos os elementos da DGS que, de repente, ocuparam o nosso espaço público, mas que é recorrentemente desmentida pelos profissionais de saúde, que se queixam de falta de material, poucas condições de trabalho, limitações das teleconsultas e de tudo o que ficou por fazer. Na verdade, os portugueses sabem as condições do SNS: que outra razão justificaria o recolhimento voluntário e assustado da maioria da população contra todas as indicações técnicas? Passou por, face ao medo da doença e da morte, terem consciência de que não tínhamos as condições necessárias para responder às exigências da pandemia. Mas depois entramos no domínio da fantasia coletiva e passamos a acreditar que, afinal, está tudo bem e vivemos um milagre português.
No que ao ensino diz respeito, repete-se a mesma efabulação. O discurso público dominante destaca a capacidade de resposta das escolas, dos professores, das universidades. A realidade é bem diferente. Os professores dos ensinos básico e secundário demoraram cerca de um mês (como é natural) até se adaptarem à nova realidade e, durante esse período, a maioria dos alunos não teve atividades de aprendizagem. Numa segunda fase, os estudantes foram sobrecarregados com exercícios que deviam realizar autonomamente e passaram a aulas à distância que não correspondem às expectativas de um ensino efetivo (muitos do ensino básico nem aulas têm tido). Basta acompanhar as redes sociais dos mais novos para perceber como eles repetem as mesmas críticas: os professores exageram nos exercícios como tentativa de colmatar a ficção da avaliação à distância, têm dificuldades em respeitar os horários das aulas e os jovens passam todo o dia sentados à frente de um computador. No caso dos mais novos, quase todo o trabalho de aprendizagem tem de ser acompanhado pelos pais que estão, teoricamente, em teletrabalho, e muitas famílias não têm simplesmente condições materiais para permitir que todos tenham acesso a um computador e internet. Do lado dos professores, os problemas espelham-se: têm que ter computador para si e para os seus filhos, passam horas a fio à frente de um ecrã e têm que lidar com estudantes que escolheram como única missão desestabilizar as aulas.
No ensino superior, repetem-se muitos destes problemas, embora o processo tenha sido mais fácil: a maioria das universidades respondeu de forma rápida e tem mecanismos de adaptação, mas não podemos ficcionar que a qualidade se mantém. Os estudantes universitários revelam, em geral, pouca autonomia e não se transformaram em pessoas novas só porque entramos em situação de emergência. Na verdade, têm revelado dificuldades em gerir a sua agenda e um elevado grau de desmotivação, e as aulas online dificultam a concentração e não promovem uma interação efetiva, tornando-os, em geral, mais apáticos. Mas o discurso oficial promove a ideia de milagre português.
A alteração repentina das nossas vidas levantou dificuldades para todos – não é isso que está em causa. O que é surpreendente é verificar a fantasia coletiva que suporta a ideia de que está tudo bem, avaliando de forma positiva a atuação do governo e preferindo ignorar os problemas a reconhecer e verbalizar críticas e dúvidas justas. O problema deste mecanismo de defesa – provavelmente, um dos nossos traços culturais mais interessantes – é que não é compatível com uma cultura democrática e emancipadora. No nosso caso, temos um governo que parece não ter um plano claro do que pretende, navegando ao sabor da opinião pública e em função do que fizeram outros países, e que cria continuamente regras sem sentido, como tornar obrigatórias medidas que eram consideradas irrelevantes há um mês (como o uso de máscara), permitindo caminhar e correr na praia mas não estar sentado ou deitado ou aprovando normas impraticáveis para as creches.
E a maioria de nós parece aceitar tudo isto sem questionar e perdendo a possibilidade de desenvolver uma responsabilidade emancipadora e um espaço de liberdade individual. No fundo, permanecemos no estado infantil de Alice, deixando que sejam as autoridades a decidir toda a nossa vida privada como se fôssemos, individualmente ou em contexto familiar, incapazes de avaliar riscos, assumir responsabilidades e proteger os mais frágeis. O mais recente filme em torno da regulação da ida às praias, com sugestões de utilização de drones, polícia marítima de vigilância e limitações de tempo, é só mais um sintoma da nossa doença. Querer acreditar que o país das maravilhas não é o reino do absurdo.