Um momento que parecia tão distante tornou-se, de repente, tão próximo. Vemo-nos agora em contagem decrescente para o fim da governação de António Costa e, infelizmente, a discussão política parece limitar-se a contornos jurídicos. Discutem-se parágrafos da Procuradoria-Geral da República, escutas, prazos judiciais; distinguimos corrupção de tráfico de influências e tentamos compreender quem tentou forçar quem a fazer o quê; voltamos, mais uma vez, aos casos de corrupção no Partido Socialista e aos negócios promíscuos entre estado e privados; dividimo-nos entre acreditar na integridade de António Costa e espantarmo-nos com a irresponsabilidade de se ter rodeado por aquelas pessoas. Mas, enquanto nos distraímos com estas discussões, importa fazer o balanço de oito anos de governo.

Importa, acima de tudo, que não se sedimente a ideia de que foram bons governos que, por azar, tiveram infortúnios. Recordemos o estado a que chegou o serviço nacional de saúde, as condições nos tribunais, a desastrosa política de imigração e a destruição do SEF; e recordemos o país em que a maioria se sente pobre, ou porque percebeu que o seu salário está hoje muito próximo do salário mínimo ou porque a maioria dos comentadores, querendo contestar a subida do IUC, passou a designar como pobre quem tem um carro igual ao seu – éramos, há não muitos anos, a classe média: agora somos pobres.

E, claro, a educação. A inaptidão de pensar a longo prazo (há quanto tempo se sabia que os mestrados de ensino não estavam a formar professores em número suficiente para cobrir as reformas?); a incapacidade de ter uma visão política global e coerente entre as diferentes áreas governativas (se adotamos políticas de imigração tão amplas, isso não tem necessariamente impacto no número de professores de que necessitamos?); as medidas incompreensíveis durante a pandemia e a recusa em reconhecer o seu impacto negativo; a desvalorização dos problemas materiais e concretos da classe docente enquanto se despendem energias com legislação sobre autodeterminação de género; e a primazia dada às questões da “cidadania” em detrimento de um ensino de conteúdos. Sim, devemos recordar tudo isso. Mas, acima de tudo, não podemos esquecer uma das primeiras medidas tomadas pelo governo de António Costa, ainda em tempos de gerigonça: a destruição de um sistema educativo plural, com a redução drástica dos contratos de associação.

Estes contratos, celebrados entre escolas privadas ou cooperativas e o estado, garantiam um financiamento estatal com a contrapartida de essas escolas fazerem parte do sistema de ensino público. Isto significa que, apesar de manterem autonomia para a determinação dos seus projetos educativos, as regras de acesso para os alunos eram iguais às de qualquer escola estatal e eram fiscalizadas pelo estado. Esta solução foi fundamental para o regime democrático, pois permitiu garantir o direito à educação de todos os portugueses: não havia escolas estatais suficientes e, por isso, os privados foram incentivados a providenciar um serviço que o estado não conseguia garantir.

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Ainda assim, mesmo cumprindo a sua missão, estando perfeitamente integradas na comunidade, revelando uma procura mais elevada quando competindo com escolas estatais e, como se viria a verificar mais tarde, apresentando maior eficiência económica do que o sistema estatal, o primeiro governo de António Costa concretizou a sua destruição.

O contexto político permite compreender a razão: o acordo parlamentar entre a esquerda tinha de assentar numa base comum, que foi constituída substancialmente por medidas de reposição, mas que se abriu também à educação. Esta abertura resultou de uma mudança geracional dentro do Partido Socialista que se traduz numa visão ideológica muito mais centralista e estatista. Esta nova geração, muitas vezes designada, por comodidade, como jovens turcos (embora não sejam jovens, nem turcos), engloba muitos dos protagonistas dos últimos dias (João Galamba, Duarte Cordeiro, Pedro Nuno Santos); mas entre eles também poderíamos incluir João Costa e Alexandra Leitão. Tendo vivido uma outra história que não a história da formação do Partido Socialista, sentem-se mais próximos dos partidos à sua esquerda do que as gerações anteriores, são menos propensos a pensar soluções ao centro e de iniciativa privada e tendem a ter uma visão muito mais estatista da economia e centralizada da educação.

Não é possível pensar hoje a educação sem considerar o modo como ela tem vindo a ser entendida, no mundo ocidental, como local de disputa política e cultural. Entre nós, o plano educativo tem sido submetido, na última década, a um assalto político declarado, que visa substituir uma educação baseada em conteúdos por uma educação para a cidadania e em que o conhecimento e a exigência cedem lugar a “competências” e à relativização do mérito. Esta nova visão para a educação exige uma crescente centralização das funções educativas no estado – e isto permitiu aproximar as novas ideias do PS dos partidos à sua esquerda, levando a um acordo mobilizado socialmente contra as escolas com contratos de associação, com o desejo que correspondia ao receio de Tocqueville: “Forçar todas as crianças a frequentar as escolas do Estado. Eis que chegámos a Esparta.” Foram estes novos valores a conduzir à decisão relativa aos contratos de associação, que o Partido Socialista sempre havia respeitado e que eram genericamente aceites pelas gerações mais velhas.

Para o bem ou para o mal, a ambição centralizadora resulta sempre em desastre e não são, por isso, surpreendentes os problemas que a escola pública tem revelado. A consequência tem sido o crescimento do ensino particular e cooperativo (garantido pelo art. 43º/4 da CRP), que tem um peso cada vez maior nas grandes zonas urbanas, como notou Rodrigo Queiroz e Melo recentemente. Mas esta liberdade está limitada às famílias com mais recursos económicos, pelo que o PS, na sua viragem ideológica, acabou por produzir uma sociedade mais desigual, em que as famílias com maiores rendimentos são livres de escolher um ensino de qualidade, enquanto as famílias de menores rendimentos estão condenadas a uma escola pública com poucos recursos, mal-organizada e sujeita a uma carga ideológica crescente. (O repto lançado por João Miguel Tavares, no sentido de se saber quantos dos ministros socialistas têm filhos em escolas privadas, faz todo o sentido.)

Oito anos é muito tempo – mas não podem ser esquecidos durante os quatro meses que o Presidente da República considerou necessários para que os partidos se organizem e a sociedade se prepare para novo momento eleitoral. Importa recordar o legado que os governos de António Costa nos legaram, em particular no que diz respeito à educação.