Desde os meus tempos de liceu e faculdade que milito na defesa de direitos fundamentais, algo que faço até hoje, estando por agora mais interessado com as literacias digitais, a inclusão digital, e a boa governance no uso da informação. Houve um tempo, que já sinto como longínquo, algures entre os anos 80 e 90, em que as minhas preocupações foram canalizadas para o combate ao racismo, à discriminação sexual, e ao acesso à igualdade de direitos por homens e mulheres. Por essa altura, interessei-me e estudei questões como crimes de guerra e a criação de um tribunal penal internacional, a relação entre racismo e democracia, a influência das religiões na perpetuação das desigualdades e os direitos de minorias. Desde essa época que é claro para mim existir uma diferença significativa entre os que olham para a promoção dos direitos fundamentais como forma de eliminar as desigualdades, e os que os querem associar a formas de promoção de ideologias de vanguarda que encontram nos “oprimidos” categorias sociológicas para a construção de sociedades onde cada pessoa deve esvaziar-se da tradição para aderir a um novo “Eu”. Para estes últimos, a defesa dos direitos só tem interesse e é válida se for instrumental daquilo que é a sua ambição de base: impor um modelo de sociedade de rutura, sem classes e de cariz totalitário, onde as diferenças naturais e baseadas nas escolhas livres, não têm lugar.

Desde então que assisto a uma renovação permanente das “causas” e das “lutas”, onde as bandeiras se alteram, mas as semânticas, com ligeiros “liftings”, são essencialmente as mesmas. Por estes tempos, elas apresentam-se muito estruturadas à volta do que se tem convencionado serem as “ideologias de género”, para onde confluem vários focos de tensão pelos quais não tenho particular simpatia.

Desde logo, não vamos ignorar que existem, em algumas barricadas e resistências à suposta “ideologia de género”, pessoas que, na mesma medida, e em substância, recusam direitos fundamentais que já há muito deviam estar enraizados, não apenas na lei (onde na sua grossa maioria, já estão), mas sobretudo no espaço público, na cultura e vivência sociais, e nas relações interpessoais. Isso não significa, porém, que o grande problema que enfrentamos hoje não assente naquilo que considero ser um “paradoxo de extremismo”, ou seja, uma tentativa de, à laia da defesa de uma suposta ideia de inclusão, se promoverem visões totais e fechadas sobre questões de escolha e humanidade, que em tudo deveriam estar fundadas na mais ampla tolerância e liberdade.

Para uma parte significativa dos ideólogos das teorias de género, a desigualdade entre homens e mulheres só pode ser compreendida se aceitarmos que elas são uma construção social do capitalismo, do colonialismo e do racismo. A ideologia do género não é assim uma forma de promoção da igualdade de direitos de homens e mulheres, ou da possibilidade de afirmação da identidade sexual de cada um, em liberdade, mas uma captura destas ideias legítimas para promover o socialismo e destruir as sociedades como elas hoje são, nos seus fundamentos principais. Pois para estas pessoas só em sociedades socialistas e marxistas deixarão de existir sistemas de poder e de dominação social que oprimem as mulheres, os gays ou as minorias raciais. A coisa é de tal forma paradoxal que, na prática, todos de alguma forma poderão com facilidade sentir-se parte de uma categoria “oprimida”, com exceção de uma minoria: os homens heterossexuais e brancos. É, aliás, neste contexto que emerge uma das mais fascinantes construções do pensamento atual – a “interseccionalidade” – que se dedica a perceber como diversos aspetos do que consideram ser as determinantes da identidade (género, raça, classe social, expressão sexual, religião, origem geográfica) se integram e relacionam para ampliar a opressão, formando diversas camadas de discriminação. Se, na componente analítica, os estudos ditos “interseccionais” têm o seu interesse, a forma determinista, quase psitacista, como as soluções apresentadas são capturadas ideologicamente explica bem por que razão tudo isto é instrumental e desprovido de uma efetiva vontade de eliminar as discriminações que dizem combater.

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Por isso, não sejamos ingénuos: defender a igualdade entre sexos, a liberdade sexual e de expressão, não se faz na promoção das ideologias de género ou no fomento artificial de categorias desprovidas de qualquer sentido de humanidade, nem no apoio a quem representa partidos, ONG e outras organizações que vivem obcecadas com a utopia das sociedades que recusam o que somos, por uma razão muito simples: como podem defender a liberdade, e as pessoas, os maiores inimigos da liberdade?

O que é estranho é que tantos se deixem capturar por este paradoxo do extremismo, promovido por um núcleo minoritário radical. Em clara chantagem cultural, qualificam-se de “retrógrados”, “ultras” e “extremistas” todos os que não alinhem na sua construção social artificial, ou questionem algum dos seus pressupostos, ainda que, na sua vida e ação social, sejam radicalmente defensores dos direitos fundamentais e da humanidade que lhes está associada. Para se afirmar, a esta minoria barulhenta e sempre zangada não lhe basta ampliar as possibilidades – que seria o caminho adequado num cenário de pluralismo –, não, estas minorias querem desconstruir as bases da nossa sociedade (não apenas as ideias de família ou parentalidade, que obviamente numa sociedade plural podem ser fluídas, mas também as bases do sistema económico, cultural e social), impondo sem debate uma sociedade socialista, um modelo que está nos antípodas das comunidades tolerantes e plurais ocidentais, que valorizam um ideal de liberdade que é compatível, quer com a tradição judaico-cristã da Europa, quer com os valores laicos nascidos da Revolução Francesa. Chega a ser impressionante como o eixo da moderação, assente no pluralismo e na liberdade, está a ser dilacerado e classificado de radical, por minorias ruidosas e militantes, terraplanando dessa forma o espaço do debate e as soluções que fariam sentido em sociedades abertas.

É fundamental encontrar caminhos para a igualdade de direitos entre homens e mulheres em todos os domínios sociais, e garantir que num quadro de pluralismo e tolerância todos têm um espaço de liberdade para a afirmação da sua identidade sexual e religiosa, sem que isso resulte de uma transformação radical – e artificial – da sociedade europeia, ou corresponda à destruição dos laços e raízes que nos unem, por imposição de uma vanguarda que, em todas as sociedades onde conseguiu implementar as suas ideias, apenas trouxe pobreza, desigualdade, e destruição moral.

Pensem nisso, quando vos venderem o socialismo e a destruição da sociedade plural e livre que a tanto custo construímos nos últimos duzentos anos, como solução para a afirmação da mulher, ou vos oferecerem conceptualizações bizarras que se apresentam como fórmulas para projetar supostas identidades individuais. Acima de tudo, não tenham receio dos estigmas que vos impõem por recusarem aderir a construções que, verdadeiramente, insultam a natureza, a razoabilidade, e a inteligência, supostamente capeadas por “ciência”. E que em nada servem as pessoas, individualmente consideradas, e a sua felicidade. Porque quem instrumentaliza as pessoas, para as esvaziar e coletivizar na sua vontade, não está seguramente preocupada com a sua felicidade concreta.