Tomo de empréstimo este título pouco lisonjeiro que Nadia Urbinati – uma conhecida autora italo-americana que renovou a teoria da representação política (Chicago, 2006) e acaba de cunhar a noção de «democracia desfigurada» (Harvard, 2014) – deu a um recente artigo no jornal La Repubblica (27 de Junho). Aí discute ela a natureza personalista e mediática da liderança assumida pelo actual primeiro-ministro italiano Matteo Renzi no Partido Democrático (PD), derrubando o anterior primeiro-ministro do PD, Enrico Letta, e tomando o lugar dele. Assim como o antigo partido comunista já mudou de nome inúmeras vezes até se transformar no actual PD, ficamos a ver quanto tempo se aguentará Renzi…
Entretanto, para Urbinati, «o partido de Renzi é um não-partido, nascido como anti-partido». E, como ela explica, «convém recordar que o actual secretário-geral do PD conquistou a opinião e o governo do país antes de conquistar uma maioria eleitoral ou de ser eleito: foi uma coroação ecuménica que ocorreu fora do partido e fora das instituições. Nos “media” e nos quiosques para as “primárias”. É por isso – acrescenta ela – que faz sentido designar este fenómeno um plebiscito das audiências». Em suma, «o partido de Renzi fez saltar a cadeia de comando própria de um partido político», transformando-se ele próprio no «líder plebiscitário da Itália post-partidos». E conclui: «O problema é que não é com este tipo de responsabilidade política que um partido pode renascer como projecto».
Este processo não pode deixar de nos fazer pensar imediatamente na forma como António Costa se lançou à conquista da liderança do PS na mira de chegar a primeiro-ministro, passando por cima da cadeia de comando do partido e procurando apoios dentro e fora do PS através da comunicação social e das famosas «primárias», as quais já foram desvirtuadas antes mesmo de as urnas abrirem. É verdade que António Costa é um político profissional há mais de um quarto de século, mas António José Seguro é que era o líder do partido e, se boa parte dos deputados foram os primeiros a empurrar Costa para a frente, foi porque, como sucede quando o líder anterior perde as eleições, o parlamento ficou cheio de saudosistas. Agora, com esta candidatura surpresa, estaremos em breve diante do partido de Costa graças à frustração partidária criada pelos «media».
Com efeito, aquilo a que estamos a assistir é um plebiscito extra-partidário não só contra Seguro mas também contra as estruturas do partido. Não se trata de mero carisma, que Costa possuiria e Seguro não, mas sim do facto que o carisma está, como sabemos desde Max Weber, primeiro nos olhos de quem se vira para o líder do que nos olhos do líder que se apresenta ao povo… E tanto assim é que, depois de Renzi ter desvirtuado o mecanismo norte-americano das «primárias», já macaqueado em França com o resultado que se sabe (o PS de Hollande), foram as estruturas do partido socialista espanhol a entrar em debandada perante vários candidatos saídos não se sabe de onde apostados em conquistar o PSOE, tendo saído vitorioso nas ditas primárias um «militante de base» de nome Pedro Sánchez… Resta ver o que fará o eleitorado espanhol perante este candidato-surpresa.
E agora é nossa vez de jogar o futuro do país, não numa instituição como é – ou era – o PS, mas sim num nome que, sendo conhecido, nunca até à data se apresentara como líder do partido. Ver-se-á até que ponto o PS se renderá a dele e que acolhimento dará o eleitorado português à candidatura seguinte do novo líder, pois não lhe bastará empurrar o actual primeiro-ministro para ficar com o lugar… E se porventura não chegar lá, o PS verá então que lhe vai acontecer depois da aventura plebiscitária! Com efeito, este desmoronar dos velhos partidos sem respostas perante a crise global e perante a crise da representação democrática não é fortuito. Urbinati não estava apenas interessada em mostrar como Renzi fizera em fanicos o que restava das estruturas do antigo partido comunista italiano e, de par com os outros partidos (Berlusconi, Grillo, etc.), acabarem por destruir de vez as estruturas do sistema representativo em Itália.
Com efeito, se isto está a acontecer cada vez mais, sobretudo à esquerda de um leque partidário que se fragmenta todos os dias, é por causa da distância e da contradição crescentes que se erguem entre os partidos – ditos representativos – e os eleitorados: desde o impacto da austeridade e da corrupção larvar até à falta de confiança na palavra dos líderes partidários e na capacidade de eles cumprirem quaisquer promessas. Isto é que produz a crença no carisma. Com efeito, como escreve a autora a propósito de Renzi, não bastará ao líder «dar a cara», pois o «magnetismo do cavalo vencedor» não chegará para mudar os dados da passada bancarrota e das presentes e futuras realidades da crise e da falta de confiança dos eleitorados. Falar agora de «reformas», quando aquilo que faz falta é a própria reforma constitucional, é o mesmo que cuspir contra o vento…