Nos livros de História, 2019 será recordado como mais do que um ano eleitoral para Portugal. Se 2018, como escrevi aqui, foi um ano de revelação de intenções por parte da diplomacia portuguesa, este ano acabará marcado pela consequência dessas mudanças. No texto sobre o ano passado, foram expostas as tomadas de posição em torno da China e da Rússia e a respetiva dissonância face ao nosso eixo transatlântico. Para a leitura deste outro texto, é importante entender que a análise das relações internacionais se distingue da análise política do dia-a-dia, possuindo uma origem usualmente mais antiga e uma propagação necessariamente mais duradoura. É a partir dessa propagação que vamos olhar para 2019.
Ulisses tinha um rumo claro, que era voltar para casa. O problema da política externa de Augusto Santos Silva é esse. O ministro dos Negócios Estrangeiros desfruta notoriamente da odisseia, sem desnovelar realmente para onde quer ir – ou melhor: por onde Portugal vai indo. Corremos hoje num situacionismo sem destino, o de jogar o jogo pelo jogo. Engendrámos uma versatilidade órfã de virtude, a de guiar o país na ânsia da curva, desconhecendo a meta que melhor nos serve. Quisemos ser “pontes” mas perdemo-nos no túnel. Somos manhosos, em vez de astutos. Sobrevivemos às artimanhas – às nossas e às dos outros – sem a solidez de quem guarda uma reserva básica de princípios. Não acreditamos em nada, por isso acreditamos em todos. O valor do nosso compromisso esmoreceu. Sorridentemente, trocámos a convicção pela conveniência. Esquecemos as nobres certezas – o interesse nacional, a soberania europeia, o ocidentalismo – e substituímo-las por ideias circunstancialmente mais úteis: o financiamento privado estrangeiro (que não é privado; é chinês; e não é empresarial; é comunista) e uma recém-inventada relação de “500 anos” com uma República Popular que existe há 70. Palavra de honra, sr. ministro: os mitos, que têm o hábito de ser algo falacioso mas minimamente digno, são ultrapassados pela persistência do chavão. Crê, honestamente, que a República Popular da China tem o sistema, o poder e as ambições da China feudal? E que esses 500 anos de “relação” foram tão fundamentais para a diplomacia portuguesa que o arquivo macaense foi trancado numa cave em Mafra?
Pura propaganda, naturalmente. Mas, vindo do PS, esperava-se o quê?
Contrariamente, por exemplo, à amizade secular entre Lisboa e a corte russa, os laços diplomáticos do Palácio das Necessidades com Pequim não têm nada de histórico. A difusão dessa narrativa resume-se à tentativa de justificar a crescente abertura de Portugal ao regime de Xi Jinping. Insistindo em Homero: enquanto Ulisses resistiu aos cantos de sereia, o nosso governo namora a alga que estiver mais à mão. Até já emitimos dívida pública em Xangai, portanto a alegoria não peca por excesso. Costa, tradicionalmente menos prosaico que Santos Silva, lamuriou-se ao Financial Times acerca do “protecionismo” da União Europeia contra o referido investimento chinês. Quem diria que chegaríamos aqui: o primeiro-ministro de uma democracia europeia do século XXI a defender uma ditadura asiática das regras comunitárias. Vejamos, no entanto, o lado positivo: algumas regras de Bruxelas o dr. Costa ainda critica. Avisem-se os parceiros parlamentares, que ele não está assim tão mal.
O primeiro-ministro defende a livre-circulação de capital entre Portugal e a China, esquecendo que este só será “livre”, só “circulará” e só trará “capital” enquanto a China quiser. O executivo do Partido Socialista incorre, desse ponto de vista, em dois erros: por um lado, confunde a posição da China nacional, com que Portugal teria sempre de relacionar-se, com a estratégia da China civilizacional, da qual Portugal nunca fez parte; por outro lado, ignora – ou prefere ignorar – a disrupção para o espaço europeu causada por quem desrespeita ativamente toda e qualquer norma comercial. Não desejando negar o óbvio – que a geopolítica e o modo como olhamos para ela vão mudar nos anos vindouros –, era importante fazê-lo com transparência, responsabilidade e coerência. E não é assim que o ministério dos Negócios Estrangeiros tem procedido.
Nos idos desta legislatura, o Presidente da República, que irá a Pequim no final do próximo mês, criticou António Costa pelo seu “otimismo irritante”. Ao mesmo tempo, o então líder da oposição acusava o primeiro-ministro de “navegação à vista”. Na imprensa, associámos apressadamente as picardias à forma como o governo embelezava os resultados económicos. Não deixa de ser curioso, nesse sentido, que o “otimismo irritante” e a “navegação à vista” se apliquem como uma luva à política externa de Costa e Santos Silva. Num mundo ideal, de facto, seria possível agradar ao Kremlin – não reagindo ao caso Skripal, como Portugal não reagiu – e manter intacta a relação com Londres, salvaguardando o futuro laboral dos nossos emigrantes no pós-Brexit. Nesse mundo ideal, seria também possível acordar a instalação de uma rede 5G com a Huawei e manter intacto o nosso acesso às redes de informação e inteligência da NATO. O problema, meu caro leitor, é que não vivemos num mundo ideal. E este espetáculo de equilibrismo terá consequências dificilmente reversíveis.
Em política externa, ao contrário do verificado na nossa política doméstica, não se costumam dar segundas oportunidades. O PS anda a brincar com o fogo.