Nos livros de história, 2018 será recordado como um ano de revelação de intenções por parte da diplomacia portuguesa. A nossa política externa foi – em gestos simbólicos mas consequentes – marcada por um afastamento dos seus aliados tradicionais e transatlânticos e por uma aproximação às potências que esses mesmos aliados têm como adversários: a China e a Rússia. Isso foi evidente em março, quando o governo português não se juntou à NATO e à larga maioria dos países da União Europeia face ao caso Skripal, e em dezembro, com a receção ao presidente Xi Jiping e a abertura à iniciativa Belt and Road. Nunca, tão publicamente e num tão curto espaço de tempo, a República Portuguesa mostrou este tipo de à vontade com um lado do mundo que pouco tem a ver com o Ocidente e com a democracia liberal. Não o pretendo dizer como juízo de valor, mas como juízo de facto. Está feito.

A resposta mais previsível a esta constatação terá que ver com outro facto evidente e árduo de questionar. Não foi Lisboa que abandonou o Ocidente, foi o Ocidente que se abandonou a si mesmo. Dito de forma menos poética: antes de Portugal demonstrar o referido afastamento da União Europeia (como primeiro parceiro económico) e da Aliança Atlântica (como primeiro aliado para a defesa), a maior superpotência global já se havia distanciado de ambas. A administração de Donald Trump tem, desde o seu início, um posicionamento hostil tanto para a UE como para a NATO. E quando os Estados Unidos da América abandonam o seu papel de guardião do Ocidente – e das instituições e tradições democráticas que este representa – é natural que um país pequeno mas estratégico como o nosso aja em conformidade. Na arena internacional, a mudança de equilíbrios de poder tem consequências.

Nessa medida, não foi surpreendente que o governo português não expulsasse um único diplomata russo, quando a maioria dos seus aliados o fez após declarar a Rússia como culpada pelo atentado contra Sergei Skripal. Insisto que não o digo como juízo de valor, mas como um facto. A excecionalidade da decisão lusa não foi arbitrária. O importante é notar que essa decisão – a indiferença operacional face a um ataque químico em solo europeu – seria altamente improvável há menos de dez anos.

Se olharmos para o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, a defesa da NATO tem sido uma constante do seu discurso no que toca à política externa; mas tal não impediu o Palácio de Belém de acompanhar a opção de Augusto Santos Silva como legítima. O ministro dos Negócios Estrangeiros e o nosso Presidente da República estiveram juntos na não-expulsão de diplomatas russos em março. Se olharmos para o Parlamento como outro exemplo, é curiosíssimo que até o partido de governo (o PS) e o partido de assumida oposição (0 CDS) encontrem sintonias no que à Rússia diz respeito: os socialistas ficaram ao lado de Santos Silva e os centristas não esqueceram a «doutrina Portas», que recomenda boas relações com Moscovo por motivos energéticos e de segurança. No Kremlin, compreensivelmente, rejubilou-se. E em 2019 o solo português receberá visitas de altos quadros russos como fruto desse rejúbilo.

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Quanto à República Popular da China, o protocolo e a cerimónia deste mês foram menos espetaculares que o sucedido no caso Skripal e na relação com a Rússia. A iniciativa Belt and Road tenderá a centralizar os núcleos de decisão e de investimento em Pequim e todos os membros dessa iniciativa deverão ter noção disso: serão parceiros, sim, mas parceiros dependentes da China. Se as relações internacionais, hoje, se baseiam na capacidade de estabelecer confiança e exercer influência, é dúbio que Portugal consiga apertar tão enfaticamente a mão do sr. Xi sem perder essa capacidade junto dos seus parceiros fundamentais ou dos seus aliados mais antigos. Compreende-se que um governo como o de António Costa, cuja tática orçamental está assente no mais pragmático dos situacionismos, seja igualmente irresponsável na gestão do posicionamento estratégico português no mundo. O que não se compreende é que sejam poucos a confrontá-lo com isso.

Apesar de tudo, sendo realistas, não podemos desvalorizar a visita de Marcelo à Sala Oval no último verão e as idas continuadas de Augusto Santos Silva a Washington D.C. durante a corrente legislatura. Essas são provas de que o modo como a Casa Branca tem descartado o multilateralismo não magoa necessariamente as nossas relações bilaterais com os Estados Unidos. Com efeito, o carácter pouco ortodoxo da Presidência Trump faz com que não seja obrigatório que as descritas aproximações portuguesas à Rússia e à China signifiquem obrigatoriamente uma ruptura entre Portugal e os EUA. A questão é por quanto tempo conseguirá o nosso MNE manter esse jogo de ambiguidades – a que o juízo popular chamaria «corda bamba» e a que os estadistas chamaram «diplomacia».

Mais do que isso, é urgente perguntarmo-nos: até que ponto é normal o ministro dos Negócios Estrangeiros russo ser recebido em Lisboa oito meses depois de o nosso governo subscrever as conclusões do Conselho Europeu que culparam a Rússia pelo atentado em Inglaterra?

As mudanças na arena internacional decorrentes do divórcio de duas coisas antes unas – a América e o Ocidente – teriam sempre impacto na nossa política externa. Era importante gerir essa inevitabilidade com o menor número de erros possível porque, em política, a inevitabilidade não justifica o erro.