As reservas, as marcações feitas para a Páscoa e para o verão, neste momento, são muito boas. Isso é espetacular porque quer dizer que as pessoas sentem – o que aconteceu durante a Segunda Guerra [Mundial], o que aconteceu sempre que houve conflitos – que Portugal é um porto seguro, é um país seguro, e é um país – nós queixamo-nos de vez em quando – mas climatericamente maravilhoso”. As palavras são do Presidente da República em declarações aos jornalistas na Bolsa de Turismo de Lisboa e aqui citadas.

As consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia são humanitariamente catastróficas, “o inferno na terra”, como todos temos assistido através das notícias, e têm gerado uma onda de solidariedade nos países da Europa ocidental. Estamos perante um choque humanitário brutal na nossa casa europeia, com pessoas que nos são próximas – poucos são, em Portugal, os que não conhecem alguém de origem ucraniana, dado o peso dessa comunidade em Portugal. O que pode ser a melhor explicação para a onda de solidariedade que se gerou.

A guerra, aliada às sanções aplicadas à Rússia, desencadeou igualmente um duplo choque, energético e alimentar, com consequências que se antecipam devastadoras para os países mais pobres, que podem enfrentar até uma fase de fome. Mas igualmente com efeitos nas famílias de mais baixos rendimentos nos países ocidentais europeus. Ninguém ficará imune à subida dos preços da energia e da alimentação, mesmo que os governos dos países ocidentais consigam encontrar fornecedores alternativos, face à sua maior capacidade financeira, – mas com efeitos nos mais pobres –, e mesmo que tentem adoptar medidas para moderar a subida de preços, com subsídios que nunca poderão ser tão generosos como os aplicados na pandemia.

Os efeitos da guerra na Europa Continental serão muito mais significativos do que no resto do bloco ocidental, de acordo com a perspectiva unânime das organizações internacionais. O mais recente exercício foi feito pela OCDE, adiantando que o impacto na evolução da produção pode ser menos grave se os países desenharem bem as suas medidas de apoio, concentrando-as nas famílias e nos sectores mais afectados. Todos estas perspectivas estão a ser construídas num quadro de muito elevada incerteza, partindo do princípio de que a NATO não se envolve no conflito.

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O momento que estamos a viver tem para todos nós a consequência de uma subida acentuada de preços, com a consequente redução de poder de compra. Só isso pode, em si, reduzir a procura de bens e serviços não essenciais, com as famílias a escolherem um comportamento financeiro prudente.

Além disso, não é de excluir que algumas pessoas dos mercados de origem do turismo português, na Europa Central, estejam neste momento igualmente submersas no apoio aos refugiados – pode não ter peso mas não é de desvalorizar. Veja-se, por exemplo, o testemunho da líder de uma associação alemã de viagens dizendo que identificou uma redução nas reservas, “uma espécie de paralisia”, já que há algumas pessoas preocupadas com a guerra e envolvidas em trabalho voluntário, e sem tempo para pensarem nas férias. Além, obviamente, do medo de enfrentar um tempo de preços a subirem.

Claro que também se antecipa que o turismo dos países do Sul da Europa será menos afectado, por estar mais longe do conflito, como diz o Presidente. Mas toda a procura vai diminuir, como aliás os operadores portugueses de turismo também reconhecem. Percebe-se que o Presidente da República quisesse dar um pouco de luz nestes tempos tão sangrentamente sombrios, mas a realidade pode ser menos generosa do que aquela que está a antecipar.

Os efeitos da guerra na economia são globalmente bastante equívocos, como se pode ver em trabalhos feitos para a economia norte-americana. Por exemplo, pode ver-se aqui que os EUA pagaram com dívida a II Guerra Mundial, a Guerra Fria e a guerra no Afeganistão/Iraque, com impostos a guerra na Coreia e com inflação a guerra no Vietname. E os efeitos na economia não são igualmente claros, sendo certo que, mesmo gerando crescimento, tal pode dever-se a problemas de contabilização e traduzem-se sempre no desvio de recursos para a defesa – o que vai acontecer também neste caso, em que os países europeus, incluindo Portugal, vão ter de gastar mais dinheiro do Orçamento na defesa.

No caso português, identifica-se igualmente a ausência de uniformidade nos efeitos. O Presidente da República fixou-se na II Guerra Mundial, mas na I Guerra os efeitos em Portugal foram muito negativos. Usando dados das séries históricas do projecto Maddison, verificamos que na I Guerra Mundial (1914-18), na qual Portugal participou, a produção por habitante em 1918 equivalia a 91% da registada em 1914. Em contrapartida, na segunda Guerra Mundial (1939-45), em que Portugal não participou, a produção por habitante era 3% superior em 1945 quando comparada com 1939. Ou seja, crescemos quando assistimos apenas à guerra, recuámos quando participámos nela.

Fonte: Maddison historical statistics

No livro recentemente editado História Económica Contemporânea, 1808-2000, Álvaro Ferreira da Silva refere que a participação de Portugal na I Guerra Mundial foi financiada com recurso a empréstimos, a Inglaterra e ao Banco de Portugal e CGD – financiamento monetário. A inflação foi – como agora – uma das características desse período. “Grande parte da subida do custo de vida [entre 1914-18] resulta da escassez de bem essenciais (produtos alimentares, combustíveis)…”, escreve Álvaro Ferreira da Silva no livro citado. A seguir à guerra Portugal enfrenta uma espiral inflacionista de uma dimensão que, diz o autor, “só é ultrapassada pelas experiências de hiperinflação vividas pelas potências beligerantes da Europa Central”. Um alerta para os dias de hoje, designadamente para a tentação de pagar a guerra com financiamento monetário – mas este é outro tema. Voltemos à evolução da produção.

No mesmo livro, José Luís Cardoso apresenta dados sobre o crescimento da economia com base numa obra de José da Silva Lopes, onde se vê, mais uma vez, uma quebra na produção no período da I Guerra (uma redução média do PIB da ordem de 1,7% entre 1913 e 1919 basicamente em linha com o que regista a Europa a 15) e um crescimento médio de 2% entre 1939 e 1946, em contraciclo com a Europa a 15, que enfrenta uma quebra na produção de 2,6%. Portugal, que não participou directamente no conflito, recorda José Luís Cardoso, “conheceu até um momento de glória com a exportação de uma matéria-prima estratégica em contexto de guerra: o volfrâmio”.

O turismo, numa interpretação das palavras do Presidente da República, é o volfrâmio desta guerra. Mas, contrariamente ao que diz Marcelo Rebelo de Sousa, não temos qualquer garantia de que este tempo será para a economia portuguesa o que foi, em termos de crescimento da produção, a II Guerra Mundial. A subida muito acentuada de preços, a catástrofe humanitária que exige de todos apoio, a necessidade de usar mais recursos na Defesa e até a tendência de desglobalização que afectará inevitavelmente o turismo são realidades que tornam pouco provável a imprudente e pouco razoável perspectiva do Presidente sobre as vantagens de Portugal nesta guerra.