Sem grandes surpresas, o primeiro grande teste à política externa da administração Biden vem de Moscovo. Biden chegou à presidência a ter de lidar com um ataque cibernético em larga escala, o SolarWinds, atribuído à Rússia. Seguiram-se sanções, incidentes diplomáticos, mais sanções, expulsões de embaixadores de parte a parte que faziam antever uma escalada nas hostilidades. Isto, depois de Biden ter, ainda em campanha, lançado uma ofensiva diplomática às autocracias, entre as quais a Rússia se insere, sem ambiguidades para a administração americana.
O momento mais alto das tensões chegou há cerca de duas semanas, quando a NATO anunciou o seu exercício militar “Defender Europe 2021”, que teve lugar a 23 de abril, perto da fronteira russa.
Apesar de ser um exercício militar que a Aliança Atlântica leva a cabo anualmente, este – anunciado com pompa e circunstância pela NATO – excedeu, em escala militar e geográfica, os que tinham tido lugar até aqui. Mais de 30 mil homens localizados em mais de 30 zonas diferentes, incluindo a região do Mar Negro. O anúncio do exercício teve resposta imediata da Rússia. Sergei Lavrov, Ministro do Negócios Estrangeiros, considerou que se tratava de uma manobra de “clara orientação antirussa”.
A Rússia teve uma dupla reação: primeiro, o estacionamento massivo de tropas na fronteira da Ucrânia, num claro aviso de que está disposta a usar a força caso o Ocidente continue a “desafiar” a sua esfera de influência. O principal intuito desta deslocação de forças foi demonstrar aos Estados Unidos e aliados que, se pensavam que a Rússia ia manter-se passiva perante aquilo que Moscovo considera um conjunto de provocações, estavam enganados. Não é alheio ao acontecido o facto de ser conhecida a política pró-ucraniana de Biden e a pouca simpatia que o Partido Democrata nutre pela Rússia.
Depois ,completou a ameaça no discurso do Estado da Nação da semana passada. Putin deixou recados sérios a quem o quisesse ouvir. O primeiro é que a Rússia também tem “linhas vermelhas”, que outros não podem ultrapassar. E neste momento, a linha vermelha mais importante é a Ucrânia. Moscovo está disposto a tudo para manter a ordem regional criada por si em 2014. Segundo, demonstrou que o seu arsenal nuclear se desenvolveu tecnologicamente nos últimos anos e está pronto para fazer face ao sistema de defesa antimíssil norte-americano. Finalmente, escolheu uma narrativa para caracterizar a relação entre a Rússia e os Estados Unidos, em que a primeira é o ator responsável do sistema internacional, respeitador do direito internacional, da soberania dos Estados e amante da paz, enquanto Washington é o bully de serviço, que não fez caso dos avisos de Moscovo relativamente à sua política externa aventureira, quer com a Rússia – que desde 2002, segundo Putin, tenta avisar os Estados Unidos da forma como estão a conduzir a sua política externa –, quer com o resto do mundo. Por outras palavras, a Rússia desenvolveu um discurso próprio (em parte para uso interno) que justifique uma posição agressiva relativamente à América.
As tensões baixaram um bocadinho de tom com um telefonema de Joe Biden ao homólogo russo. Pouco sabemos da conversa. Mas sabemos que a política externa americana iniciada por Biden tem um pendor marcadamente anti-autocrático. O presidente norte-americano tem demonstrado, do ponto de vista retórico e diplomático, que quer ser levado a sério. Esta agenda tem vantagens: unir os americanos polarizados em redor de uma política externa com inimigos explícitos; clarificar posições e poder constituir fonte de união das democracias à volta de um projeto comum. Mas tem riscos, especialmente no que respeita à Rússia.
Se a China responde retoricamente, tornando claro que não aceita as posições americanas, mas que não vai correr riscos desnecessários para responder (a menos que mude alguma coisa em Taiwan), a Rússia já provou, ao longo dos anos, que não hesitará em fazer uso da força para defender as suas “linhas vermelhas”. Daí que se tenha tornado o primeiro grande teste à liderança americana. Estará a administração Biden disposta a acompanhar a sua duríssima retórica com os meios necessários para a tornar credível? A resposta a esta pergunta determinará o curso das relações internacionais nos próximos quatro anos. Mas determinará também a credibilidade da liderança do mundo livre que Joe Biden pôs no centro da sua estratégia internacional.