Por estes dias, participei naquela que é considerada a maior manifestação pró-vida do mundo: a Marcha pela Vida em Washington DC, capital dos EUA. Escusado será dizer que na maioria dos órgãos de comunicação social mal se deu por este evento. Se é de estranhar não sei, mas 150 mil pessoas a caminhar ao longo da emblemática Constitution Avenue ao som de música e tambores não é propriamente algo que passe despercebido. Adiante.

A primeira Marcha realizou-se a 22 de Janeiro de 1974, precisamente passado um ano da histórica decisão do Supremo Tribunal de Justiça que levou à legalização do aborto no país. Essa decisão é mais conhecida pelo caso Roe versus Wade (ou simplesmente Roe v Wade). Jane Roe é pseudónimo para Norma McCorvey (1947–2017), uma jovem mulher do Texas que na sua terceira gravidez se viu impedida de abortar devido às restrições na lei então em vigor (o aborto no Texas só era permitido na situação extrema de se ter que salvar a vida da mãe). Não se dando por vencida, Jane Roe decide ir avante e processar o Estado, na altura representado pelo seu Procurador, Jenry Wade. O que começou no Estado acabou assim no Supremo Tribunal. O parodoxo nesta história é que não só Jane Roe acabou por não abortar como se veio a tornar numa das mais acérrimas defensoras da vida, tendo lutado até ao fim dos seus dias pela reversão da decisão do Supremo Tribunal. Tivesse vivido mais uns anos e estaria bem lá perto, como veremos.

Roe v Wade teve um impacto tremendo na forma como olhamos os da nossa própria espécie. É que, para muitos, a Lei não diz só respeito a ordens emanadas do Estado, mas funciona também como um código de conduta. Se a Lei permite, assim segue o raciocínio, então não há que haver dilemas éticos ou reprovação. É assim que, aos poucos e poucos, um Estado vai pervertendo a consciência moral dos seus cidadãos. Onde é que já vimos isto?

Acontece que a experiência de quem passa realmente pelo drama do aborto, e não de quem está sentado na secretária a legislar, é outra totalmente diferente. Mesmo legal, o aborto é tão brutal que não só destrói uma vida humana única e irrepetível – daí o disparate em usar-se o termo “interrupção” para algo que se termina de vez, sem possibilidade de mais tarde se retomar – como tem repercussões sérias na saúde física, psíquica e espiritual da mulher. Não raras vezes, qual réplica num sismo, a onda de choque atinge também o homem e a família. A campanha Silent no More dá uma ideia do que aqui se diz.

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Os defensores de Roe v Wade parecem continuar indiferentes a esta realidade e vivem obcecados com a sacrossanta ideia de autonomia, como se esta tivesse precedente sobre o nosso dever em proteger e cuidar os da nossa própria espécie (é caso para perguntar o que pensaria Greta Thunberg sobre isto). A autonomia é importante, mas não nasce por geração espontânea. Para a exercermos, precisamos em primeiro lugar de vir a este mundo. Por outro lado, o aborto é um espelho daquilo que se pretende combater quando se fala em abuso de poder. Pensemos na coerção a que muitas mulheres são sujeitas ou na violência doméstica. Se somos sensíveis, e bem, a este abuso, porque não sê-lo também quando um ser humano (ainda que do tamanho do dedo mindinho) totalmente incapaz de se defender fica à mercê de uns fórceps ou de uma máquina de sucção?

No meio disto tudo há duas óptimas notícias. A primeira é que o movimento pró-vida se foi transformando de forma gradual mas consistente num movimento pró-mulher, pró-família, pró-justiça, pró-ciência e, pasme-se, pró-inclusão. Pró-mulher porque atende às necessidades únicas da mulher que alberga vida em si, sobretudo quando há dificuldades sociais e financeiras, falta de apoio do homem ou incompreensão dos pais; pró-família porque tem sempre no horizonte a relação estável e duradoura do casal e a educação e desenvolvimento da criança; pró-justiça porque promove a proteção jurídica do nascituro e preserva o bem comum; pró-ciência porque sabe por A + B que uma nova vida humana começa no momento da concepção, não antes, não depois; finalmente, pró-inclusão porque não se limita a acolher somente quem acredita na sacralidade da vida humana, mas integra também movimentos seculares que partilham o mesmo ideal ético, como Rehumanize International, Secular Pro Life e Feminists for Life. Não se chegou a esta sofisticação e abrangência por acaso. Isto é fruto de cinco décadas de reflexão interdisciplinar sobre a problemática, de actuação no terreno e de muito debate. Por isso, quem disser que este movimento só quer salvar vidas humanas, o que já não é pouca coisa, é mentiroso e ignorante.

A outra boa notícia é que há sinais claros de Roe v Wade poder, de facto, vir a ser revertido. Com a actual maioria conservadora no Supremo Tribunal (seis em nove juízes), a história agora é outra. Em vez de se porem a especular se o direito à vida privada, tal como determinado na Constituição, abrange o direito a terminar uma gravidez (foi essa a interpretação dos juízes no caso Roe v Wade), a ala conservadora do Supremo Tribunal opta por respeitar o espírito da letra dos pais fundadores (daí estes juízes serem também conhecidos como originalistas). Conforme referiu o juiz Brett Kavanaugh na fase de argumentação oral no caso Dobbs contra Jackson Women’s Health Organization (o primeiro em muitos anos a chegar ao Supremo Tribunal e a desafiar a lógica de Roe v Wade), a Constituição quanto muito é neutra em relação ao direito ao aborto. Daí que para se chegar a Roe v Wade se tenha que ter forçado a Constituição a dizer algo que não diz, erro crasso em jurisprudência. Quando assim é, só há um caminho: reverter o erro. É isso que é esperado em Junho, quando o Supremo Tribunal se pronunciar sobre o caso acima referido. Stay tuned!