1 Quando era miúdo, estando a passear de bicicleta na terra onde passava férias, decidi descer uma rua íngreme e empedrada. Evidentemente, a meio da descida percebi que os travões iam ser inúteis, e só me restava aguentar em cima da bicicleta até ao fim da descida.

Este exemplo serve para descrever o que é o efeito da rampa deslizante, tantas vezes invocado no debate da eutanásia. A experiência, em todos os países nos quais a morte a pedido foi até agora legalizada, mostra sem qualquer dúvida que, uma vez legalizada a eutanásia, se torna impossível colocar-lhe barreiras. Seja na Holanda, que hoje debate a possibilidade de dar um comprimido para se suicidar, gratuitamente, a partir do 70 anos, seja na Bélgica, onde já se legalizou a eutanásia de crianças, até ao Canadá, que ao fim de cinco anos de aplicação da lei deixou cair a necessidade do doente estar em estado terminal.

Por cá, os defensores da eutanásia, num acto de crença que raia a superstição, garantem que será diferente. Claro que, quando questionados porque razão será diferente, num país com um sistema de saúde a rebentar pelas costuras, onde 75% da população não tem cuidados paliativos, onde a esmagadora maioria dos idosos vivem abandonados, não sabem responder. Vai ser diferente porque eles acreditam que vai ser diferente, mesmo sabendo que a experiência dos poucos países que legalizaram a eutanásia diz o contrário.

2 Se a memória não me trai, o novo projecto do PS para legalizar a eutanásia será o décimo primeiro projecto-lei sobre o tema desde 2016. Até agora nunca nenhum chegou a ver a luz do dia, mas para o PS, à décima primeira será de vez.

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Até agora, nenhum destes 11 projectos conseguiu um único parecer positivo de qualquer entidade oficial ouvida no processo. Pelo contrário, desde as ordens profissionais ao Tribunal Constitucional, passando pelo Presidente da Republica, todos rejeitaram os projectos apresentados.

Qualquer pessoa de bom senso tenderia a perceber que se calhar o problema não é tanto de cada projecto em concreto, o problema é de fundo. Até agora não foi possível fazer uma boa lei da morte a pedido, porque essa lei não existe.

Mas, para Partido Socialista, o Bloco de Esquerda, o PAN, o Livre e a IL, o facto de todos os especialistas terem chumbado os vários projectos e o facto de largos sectores da sociedade se terem manifestado contra a legalização da eutanásia, são factos menores perante a sua crença de que, ao arrepio de todos os pareceres solicitados, a eutanásia é necessária e urgente.

3 Mas o Partido Socialista, talvez para justificar a 11ª versão do projecto para legalizar a morte a pedido, decidiu inovar.

Se é verdade que o efeito da rampa deslizante é uma realidade em todos os países em que a eutanásia é legal, também é verdade que esse efeito costuma verificar-se após a lei entrar em vigor.

Mas o PS, na sua senda do progresso, embora afirme em tom solene que a rampa deslizante é campanha negra, decidiu aderir a ela ainda antes da lei ser aprovada.

Se no anterior projecto, vetado pelo Presidente da República, os socialistas exigiam que para eutanásia ser legal, o doente tinha que sofrer de doença fatal, no décimo primeiro projecto decidiram deixar cair essa “ninharia”. Na actual proposta do PS basta haver uma “situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável.”

Temos por isso dois critérios para a eutanásia ser legal. Primeiro temos um critério subjectivo, o sofrimento intolerável que é impossível de ser medido. Este tanto pode ser físico, como emocional ou até espiritual, ficando cada médico, conforme a sua própria sensibilidade, com o poder de decidir quando é que o sofrimento é ou não insuportável.

Depois temos um critério objectivo: lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável. O problema é que neste critério objectivo cabe muita coisa. Uma perna amputada é uma lesão definitiva que pode ser considerada grave. Os diabetes são uma doença incurável que podem ter efeito graves.

Ao excluir a doença fatal, o Partido Socialista, indo em sentido contrário ao que disseram o Tribunal Constitucional e o Presidente da República, deixa cair a única ténue barreira que existia para que a eutanásia não dependesse completamente da livre interpretação dos médicos. E nem foi preciso esperar que a lei entrasse em vigor para que acontecesse. Imaginemos agora o que virá caso venha a entrar…