Uma das mais extraordinárias características da actual situação partidária em Portugal é que o PS consegue ser, simultaneamente, governo e oposição. De facto, apesar de estar ininterruptamente no governo já desde 2015 e de nas últimas três décadas ter sido o partido inequivocamente dominante no país, o PS consegue ainda assim assumir-se publicamente como a principal força de oposição a si mesmo. Um fenómeno que se manifesta de variadas formas.
Atente-se por exemplo na recente manifestação organizada por movimentos de esquerda supostamente em protesto contra a crise na habitação em Portugal. Na manifestação, os cartazes tinham por alvo os ricos, os senhorios e, claro, Carlos Moedas, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa desde 2021 e provável futuro líder do PSD. Mas, naturalmente, não visavam os anteriores Presidentes da Câmara de Lisboa (do PS), nem a Ministra da Habitação, nem o Primeiro-Ministro.
Espantosamente, o deputado socialista (e secretário-geral da JS) Miguel Costa Matos declarou enfaticamente o seu apoio aos manifestantes:
“Solidariedade com quem sai à rua pelo direito à habitação. No Idealista, em Lisboa, há 11 mil casas para comprar e 2 mil para arrendar. No Porto, 7 mil comprar vs mil para arrendar. Em Beja, 200 vs 11. Além de rendas acessíveis, os jovens precisam de apoio à compra da 1a habitação!”
Na mesma linha, aliás, dos deputados socialistas portugueses no Parlamento Europeu e dos seus cartazes proclamando, como se nada os ligasse à governação que criou os problemas actuais:
“Habitação digna para todos
No place like an affordable home”
O PS é pois manifestamente e em simultâneo governo e oposição: foi o principal responsável por políticas públicas desastrosas que bloquearam a construção de novas casas, liquidou o mercado de arrendamento, atrai estrangeiros discriminando contra os portugueses e, no final, ainda exibe cartazes de protesto e declara solidariedade com os manifestantes.
Mas talvez a situação se torne mais compreensível se recordarmos que muitos dos problemas internos no governo resultam também eles da oposição do próprio PS. Tem sido repetidas vezes o estado de guerra civil latente no interior do PS a originar descoordenação e conflitos internos. E agora temos até o candidato mais bem colocado para a sucessão de António Costa na liderança do PS com um confortável espaço de comentário próprio na SICN.
Outro caso interessante – e sintomático – é o de Sérgio Sousa Pinto. Na sua pele de comentador televisivo e em outras intervenções públicas vai tecendo, com os dotes oratórios que o caracterizam, algumas críticas incisivas ao governo. Mas a verdade é que Sérgio Sousa Pinto é ele próprio deputado socialista e há muitos anos uma figura influente do partido.
A realidade é que na espécie de regime de partido semi-dominante em que vivemos, ao PS quase tudo é permitido. Os media, a cultura e os ecossistemas universitário e científico são genericamente dóceis e dependentes. Todos os que importam sabem quem manda. E todos têm também bem presente que quem se mete com o PS leva.
Um estado de coisas que permite, por exemplo, a Augusto Santos Silva instrumentalizar sistematicamente a sua posição de Presidente da Assembleia da República para perseguir (leia-se: promover) o mais que pode o CH, assim servindo também os interesses partidários do PS.
Com o PS no governo e na oposição, vai havendo, apesar da cada vez mais acentuada perda de poder de compra dos portugueses, ainda algum pão e muito futebol. Mais ainda com o Mundial de 2030 co-organizado por Portugal, Espanha e Marrocos na agenda. Mais uma vitória de todos nós, na linha do Euro 2004 conseguido por José Sócrates, ele próprio um socialista que aparece hoje também na oposição ao PS e aos seus antigos discípulos.