Marcelo Rebelo de Sousa fez, há dias, uma breve alocução ao país em que deixou no ar uma frase interessante: “Não vale a pena esconder a realidade, fazer de conta, iludir a situação.” A quem se estaria Marcelo a referir? Penso que é hoje claro para todos os portugueses que, mais uma vez, depois de uma bancarrota, um primeiro-ministro acusado de roubar milhões e cuja elite governante se perpetua, o Partido Socialista falhou ao país na sua hora mais difícil. Marcelo referia-se, naturalmente, ao Partido Socialista e aos membros do governo. Como qualquer religião, o socialismo democrático em Portugal produz beatos, ordens mendicantes, que prestam vassalagem a quem manda para conseguirem “aquele” subsídio ou ajudinha, e, claro, conta ainda com a ajuda de avençados vários que propagam a mensagem nas redes e na comunicação social. Creio, contudo, que o português médio sabe, no fundo, de quem é a culpa do desastre a que fomos conduzidos.

Somos lestos a condenar a actuação errática e francamente criminosa de Trump, Bolsonaro e Johnson na pandemia. Salvaguardadas as devidas distâncias, deveríamos ser igualmente lestos a manter uma vigilância crítica sobre os poderes que nos pastoreiam. Infelizmente, a comunicação social que temos, agora literalmente no bolso do governo, prefere entreter-se com directos intermináveis com filas de ambulâncias à porta dos hospitais em vez de escrutinar, como é seu dever, a actuação do governo e sua (in)acção. Alguns exemplos de dúvidas que seria premente colocar aos governantes.

1. Este domingo, a meio do dia, fomos surpreendidos, por uma comunicação do primeiro-ministro austríaco, em alemão, naturalmente, a declarar que tinha chegado a um acordo com as autoridades portuguesas no sentido de enviar doentes em estado grave para a Áustria. Ficamos ainda a saber que a Alemanha irá enviar material para ajudar Portugal no combate à pandemia. A solidariedade europeia a funcionar no seu melhor, como sempre, pela qual devemos estar agradecidos. Passou um dia desde que dignitários estrangeiros informaram o povo português destes desenvolvimentos, não desmentidos pelo nosso governo. Andei pelas redes oficiais do governo, comunicados oficiais e notícias dos jornais e não encontrei qualquer referência a este acordo que foi firmado em nosso nome. Estará o governo com vergonha de anunciar que há países amigos que nos ajudam na nossa hora mais trágica? Quantos doentes irão para a Áustria? Em que condições? Ninguém sabe verdadeiramente nada. A comunicação social não pergunta, claro. Não é esse o seu papel. Deve ser, outrossim, uma cadeia de transmissão do governo.

2. Leio no Financial Times de sexta-feira e de sábado que vários países europeus estão a adiar e a repensar os seus planos de vacinação, incluindo Portugal, que é, de resto, juntamente com França, chamado à primeira página das cores salmão no final da última semana. A União Europeia falhou na sua estratégia de aquisição de vacinas. A sua burocracia foi lenta, tentou baixar preços e não comprou doses suficientes de todas as vacinas. Em Portugal, contudo, o governo continua a alimentar a ilusão de que o nosso plano de vacinação não descarrilou em termos de tempo. Nada disto é culpa do governo português, note-se. No entanto, ao contrário, por exemplo, da Alemanha, onde está a haver uma forte onda de contestação pública à União Europeia, os portugueses são mantidos no escuro acerca destes desenvolvimentos. É verdade que a ministra da Saúde, exaurida mental e fisicamente que esteja, acrescenta sempre a salvaguarda de que o plano cumprir-se-á dependendo da distribuição de vacinas. Não é, no entanto, capaz de falar claro aos portugueses e afirmar com todas as letras que o plano de vacinação está muito atrasado. Os portugueses têm direito a saber quando serão vacinados.

O momento actual que atravessamos é profundamente triste. Não só, naturalmente, pelos mortos incontáveis que temos, mas também porque mostra à saciedade o falhanço rotundo das últimas três décadas de desenvolvimento em Portugal. Saídos de uma revolução, fomos guiados por uma classe política, liderada por Mário Soares, que conseguiu, contra muitos obstáculos, encontrar os meios materiais – através da entrada na Europa – para desenvolver o país. António Costa, neste momento, é, ao mesmo tempo, culpado e vítima das circunstâncias. Neste caso as circunstâncias são simples: uma máquina de Estado má, enxameada de altos dirigentes que o são devido ao cartão do partido em vez da competência e de uma carreira sólida e autonomizada do poder político. Isto é um problema por um motivo simples: ninguém pode fazer boas decisões de políticas públicas, atempadas e com clareza num momento tão difícil sem conseguir ter uma máquina de administração pública sólida, autónoma e não partidarizada. Simplesmente, a informação que o primeiro-ministro obtém do terreno é incompleta, má ou não consegue chegar a São Bento. O Partido Socialista está a colher aquilo que semeou ao longo dos últimos 30 anos. O regime conduziu-se a si próprio a um beco sem saída. Nós pagamos a conta, em mortos, destruição económica e, os mais pequenos, em perdas talvez irreparáveis no seu percurso escolar. Chegados aqui, a minha maior pena é que, mais uma vez, a acreditar nas sondagens, os portugueses serão medrosos e preferirão agarrar-se ao status quo e reconduzir o Dr. Costa ou um seu discípulo ao poder. Que custos colectivos teremos de pagar para que Portugal consiga virar a página? Uma bancarrota não foi suficiente. Uma pandemia com milhares de mortos parece também não ser.

P.S.: Na noite eleitoral, na Rádio Observador, afirmei, erroneamente, que Abel Baptista, do CDS-PP estaria a apoiar André Ventura. A verdade é que foi Abel Matos Santos que demonstrou publicamente o seu apoio ao Chega. As devidas desculpas aos ouvintes e, em especial, a Abel Baptista que, por sinal, assinou uma carta pública a apoiar Marcelo Rebelo de Sousa.

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