Começo com uma trivialidade de pouco relevo. Uma das figuras maiores de França, Napoleão Bonaparte, era filho de pais italianos, nascidos nas Toscânia e emigrados na Córsega, então território da República de Génova. Mudou-se para França aos dez anos de idade. Apesar disto, ninguém disputa que Bonaparte fosse francês. Bom, quase ninguém. Talvez Rita Matias, deputada do Chega, tivesse algo a dizer.

Num tweet recentemente publicado pela deputada do Chega podemos ver uma foto do futebolista Kylian Mbappé acompanhada da legenda “França aos franceses”. A frase é irónica, insinuando que Mbappé, nascido em Paris e que joga na selecção francesa, não poderia ser francês simplesmente pelo facto de não parecer francês.

Não obstante o tom do tweet, há uma importante discussão a ter sobre o conceito político de identidade nacional quando este é aferido por critérios sobretudo étnicos e não raras vezes desagua numa perigosa ideia de nacionalismo étnico. Digo perigosa no sentido histórico, material e político do termo — a ideia de nacionalismo étnico já motivou inúmeras guerras e genocídios.

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Francês, à luz desta concepção étnica de nacionalidade, é então o homem ou mulher de ascendência caucasiana. Por conseguinte, um nórdico passaria bem por francês e não levantaria grandes indignações, ainda que descenda de um povo bem distinto. O mesmo para Bonaparte, nascido Napoleoni di Buonaparte. Daí que, infere-se, nunca tenha causado grande indignação aos nacionalistas franceses, que aliás o celebram efusivamente. França aos franceses *e aos corsos de origem italiana também.

A ideia de identidade nacional é uma construção social, com muito mais matizes do que esta visão estritamente étnica e racial. É também um conceito moderno, que surge com o nascimento dos Estados-Nação, construção esta que sucede aos tratados de Paz de Vestfália de 1648. Até lá, não havia integridade territorial e muito menos étnica (a Casa dos Bourbons estendia-se entre o que hoje chamaríamos de Espanha até Itália e a Casa dos Habsburgos era uma mancha por toda a Europa), nem o integralismo católico era capaz de se sobrepor aos vários credos que existiam na Europa. Os impérios eram multiétnicos e multiculturais.

A criação do Estado-Nação levou a diferentes entendimentos do que configura a identidade nacional para que um indivíduo possa ser — mais do que social ou jurídica — politicamente aceite nesse grupo identitário. Na Alemanha, a lei da cidadania, até à sua revisão em 2000, exigia que a mãe fosse alemã para um indivíduo ser alemão. A identidade nacional era sobretudo ditada por um critério jus sanguini.

Apesar de redutora, esta visão é mais pluralista do que a baseada estritamente na etnia, mas não imune a paradoxos, aliás apontados por Fukuyama em Identity, Immigration & Democracy: um turco de 3ª geração na Alemanha que falasse alemão fluente e estivesse completamente aculturado teria mais dificuldades em obter cidadania alemã do que um alemão étnico nascido na Rússia e que não falasse uma palavra de alemão.

Se levarmos esta visão ao extremo e dissermos que num determinado país só pode viver uma determinada etnia — chamemos-lhe de Volksgemeinschaft — e que, mais ainda, essa etnia é superior às demais, eclodem movimentos como o nazismo.

Embora a prerrogativa jurídica prevalecente na Europa para a atribuição de nacionalidade fosse a de jus sanguini, nos Estados Unidos a visão é radicalmente diferente (não por acaso, o nazismo teve lugar na Europa e não nos EUA). A identidade nacional americana não é definida com base em descendência ou etnia, mas sim assente em valores cívicos como a liberdade, igualdade (no sentido em que nascem todos com os mesmos direitos) ou individualismo (no sentido em que os indivíduos têm valor humano e afirmação política por si só, e esse valor não depende de pertença a um determinado grupo).

A consequência lógica desta “religião” ou “identidade cívica” é que qualquer indivíduo que nasça nos EUA, ou para lá emigre, possa ser americano, independentemente de qualquer outra filiação ou identidade colectiva. Esta tradição jus soli significa que quem nasce nos EUA reune as condições (eminentemente políticas) para ser americano. E é por isso que nas grandes guerras o exército americano tinha primeiras gerações de vietnamitas ou guatemalos a lutarem lado a lado com americanos de ascendência alemã e irlandesa, e nunca ninguém duvidou nem do seu patriotismo, nem da sua nacionalidade: eram americanos porque serviam uma só bandeira.

Nesta visão, a identidade nacional é o sentimento de pertença a uma história, símbolos, rituais e heróis comuns. Não interessa a ascendência ou etnia: se tem a bandeira americana à porta de casa e celebra o Dia da Independência, então é americano.

Aqui chegados, o que faz então de um português português, ou porque é que Rita Matias é mesmo portuguesa? O meu critério é este: se chama fino ao fino (uma alternativa inferior, mas igualmente portuguesa, é chamar de imperial), gosta de doces conventuais ou de bacalhau e conhece alguém que colocou uma marquise, então não há nada mais português do que isto.

Mesmo sendo a avó Goesa.