Quando, na madrugada do passado 24 de fevereiro, o exército russo invadiu a Ucrânia pela Bielorrússia, esperava-se uma crise humanitária sem precedentes na História recente. Embora seja ainda muito cedo para fazer um balanço seguro da situação, o certo é que já se conta com cerca de um milhão de refugiados de guerra, procurando acolhimento, sobretudo nos países confinantes, isto é, na Polónia (505.000), na Hungria (139.000), na Moldávia (97.000), na Roménia (51.000) e na Eslováquia (72.000). A estes números acrescem, igualmente, 91.000 disseminados por toda a Europa Ocidental e, curiosamente, mais 48.000 na Rússia.
O direito internacional humanitário, espelhado nas Convenções de Genebra de 1949 e, especialmente, na IV Convenção, relativa à proteção de civis em período de guerra, impõem a obrigação de auxílio a esses mesmos civis pelos países que não participam diretamente no conflito. Além disso, posteriormente, e porque as guerras não param no mundo, outros tratados internacionais de alcance regional surgiram, tais como a Convenção da Organização de Unidade Africana (10 de setembro de 1969) ou a Declaração de Cartagena (22 de novembro de 1984), as quais trouxeram para o direito internacional o princípio de não devolução (repatriação) das populações que fogem dos seus países quando eles se encontram em conflito armado. É assim interditado socorrer um refugiado e, depois, entregá-lo ao invasor militar do seu país.
A proliferação de conflitos armados ao longo da década de 90 do século passado desenvolveu-se dentro dos territórios dos próprios países, adquirindo, no início, uma fisionomia de guerra civil e, posteriormente, internacionalizando-se. Refiro-me, em concreto, às guerras da ex-Jugoslávia, as quais provocaram milhares de mortos e de estropiados, e milhões de refugiados, sem, evidentemente, esquecer os conflitos armados anteriores ou posteriores de El Salvador, Guatemala, Namíbia, Camboja, Moçambique, Tajiquistão e Burundi. E, à medida que o século XX se aproximava do fim, crises contínuas conduziram a novas operações bélicas na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana, em Timor-Leste e na Serra Leoa. Em todos esses conflitos, vários e distintos setores da população civil tornaram-se num dos principais objetivos militares, levando a que a guerra se especializasse em matar populações civis, o que fez com que se trouxesse para os debates da comunidade internacional o problema da proteção das populações.
É em tal contexto, e dentro da tradição constitucional europeia, que surge a Carta dos Direitos Fundamentais da União (criada em 2 de outubro de 2000 e ratificada a 7 de dezembro do mesmo ano), que consagra os direitos de asilo e de proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição de alguém.
Em finais de 2020 viviam em Portugal 28.629 ucranianos, ou seja, o quinto maior grupo de residentes estrangeiros. Agora, em 2022, muitos mais virão à procura de uma segunda vida. Mas, o que podem eles esperar?
As garantias de proteção estão previstas no ordenamento comunitário, na Diretiva 2001/55/CE do Conselho Europeu, de 20 de Julho de 2001, relativa a normas mínimas em matéria de concessão de proteção temporária, em caso de afluxo maciço de pessoas deslocadas e a medidas tendentes a assegurar uma repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-membros ao acolherem essas pessoas, e, a suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento. Assim, embora alguns refugiados de guerra haja que pretendam ir residir, por exemplo, para França, o destino deles poderá ser Portugal.
A norma comunitária contempla a obrigação dos Estados-membros de oferecerem ao refugiado alojamento, alimentos, subsídio de inserção, assistência social e médica, educação para os menores, e autorização de residência e de trabalho por conta de outrem ou por conta própria.
À chegada, nos Centros de Acolhimento, far-se-á um registo inicial do refugiado, o qual registo consistirá na recolha dos elementos específicos da sua identidade, com ajuda de intérpretes, e, posteriormente, ser-lhe-á atribuído o chamado Título de Proteção Temporária, que inclui título de residência, Número de Identificação Fiscal (NIF), Número de Identificação da Segurança Social (NISS) e número de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A proteção temporária tem a duração de um ano, podendo ser automaticamente prorrogada por períodos de seis meses, até ao limite de um ano. Para além desse limite poderá estender-se a um período máximo de três anos, com fundamento na subsistência das razões que justificam a manutenção, reconhecida por Decisão do Conselho da União Europeia.
Em caso de separação originada por circunstâncias associadas à guerra, o refugiado poderá sempre solicitar a proteção para reagrupamento familiar, englobando o cônjuge, os filhos menores e outros parentes próximos que com ele viviam em economia comum no país de origem, e todos os elementos da sua família mais chegados beneficiarão dos mesmos direitos enquanto durar o regime de proteção.
A proteção temporária termina mediante Decisão do Conselho da União Europeia, acima referido, baseada na verificação de que a situação no país donde o refugiado é oriundo lhe permite um regresso seguro e duradouro.
Mikhail Sergeivitch Gorbatchov, criador da Glasnost (Transparência) e da Perestroika (Reestruturação), aspirava – com um conjunto de reformas cuja implementação acabou com o regime soviético – à superação do mundo da Guerra Fria e propunha-se estabelecer um novo sistema de segurança e cooperação feito de ex-inimigos, construindo aquilo a que ele chamou de «Casa Comum Europeia». Porém, essa casa comum começou a abrir rachas nas paredes com a invasão da Geórgia (2008), o telhado desabou com a primeira ofensiva contra a Ucrânia, mais a subsequente anexação da Crimeia e de Sebastopol (2014) e, agora, pelas 3.00h da madrugada de 24 de fevereiro último, o edifício derruiu de vez.
O que virá por aí só as muralhas do Kremlin saberão.