Cá em casa seguimos a política norte-americana religiosamente. Para além de political junkie e cientista política, a minha esposa é Americana, tendo já, naturalmente, votado pelo correio para a eleição de Joe Biden para a presidência. Durante os anos da presidência Trump, apesar de fechados na bolha de Cambridge, estivemos quase sempre nos Estados Unidos. Este artigo é o primeiro de uma série na qual pretendo reflectir sobre o momento político actual dos Estados Unidos. Comecemos pelo Senado, o órgão que detém a chave do poder, independentemente de quem ganhe a Casa Branca. Se Trump conseguir renovar o mandato na presidência, a existência de governo dividido, com um Senado controlado pelos democratas, torná-lo-á, na prática, um lame duck desde o primeiro dia.

1 Os Estados Unidos estão a assistir à maior transformação demográfica e política desde a assinatura do Voting Rights Act, por LBJ, em 1965. O Partido Democrata, até então dominante no Sul de Jim Crow, criou uma nova coligação de minorias do Sul com a população dos estados industrializados do Norte e as costas liberais. Neste momento, as migrações internas dentro dos Estados Unidos, juntamente com a chegada de vastas franjas da população de origem latina à maioridade política, estão a mudar a paisagem eleitoral em locais que, até há poucos anos, seriam impensáveis. O mapa que acompanha este artigo, feito por um cartógrafo espanhol, com base em dados do Washington Post, é aquele que, em minha opinião, mostra melhor o que se está a passar. Em primeiro lugar, vemos um movimento fortíssimo de empregos altamente qualificados a fugir da Califórnia para o Texas, Colorado e Carolina do Norte. O custo de vida incomportável da Califórnia torna-a cada vez menos desejada para a fixação de talento. A Carolina do Norte, por exemplo, tem um saldo líquido de 46 mil novos trabalhadores licenciados por ano, muitos deles com empregos em empresas de tecnologia avançada, nomeadamente biotecnologia e informática, como a Pfizer, a Lapcorp, a IBM, Cisco, Google, Dell, Apple e Facebook. O Texas compete, actualmente, com a Califórnia como o maior exportador de tecnologia dos EUA. A larga maioria deste influxo de população jovem e qualificada vota, por norma, no Partido Democrata, que tem crescido de forma extraordinária nestes estados. A tendência é acentuada pela crescente percentagem de população de origem latina/hispânica em estados como o Novo México, o Arizona e o Texas, que tem dissolvido a vantagem republicana que vigora desde meados dos anos 60, com a Southern Strategy de Nixon.

Paralelemente, temos assistido a uma New Great Migration. Os descendentes de Afro-Americanos que nos anos 20 e 30 foram para as grandes cidades industriais do Norte – Chicago e Detroit, por exemplo – estão a regressar ao Sul, a cidades como Atlanta, Charlotte e Raleigh. Este movimento dos Afro-Americanos mais jovens e qualificados de volta para o Sul explica-se, em parte, pelos custos de vida mais baixos e por ligações familiares à região. Não se pense, porém, que são apenas os licenciados que voltam. Na verdade, o Rust Belt, tão falado nos últimos anos, tem perdido, desde os anos 80, empregos para o estrangeiro e para o Sul do país, onde se formou uma nova cintura industrial, na qual o trabalho e terra são mais baratos e onde existem muito menos regulações laborais e impostos estaduais. Enquanto que, no início, a indústria têxtil era a predominante, recentemente esta foi sendo substituída pela indústria automóvel, aeroespacial e da defesa: Mercedes, Toyota, Volvo, Boeing, Airbus, ou Lockheed Martin – todas estas têm fábricas no Alabama, Georgia e Carolina do Norte.

Fonte: Abel Gil Lobo na publicação espanhola “El Orden Mundial (EOM)” (www.elordenmundial.com)

2 As consequências de tudo isto são já visíveis. No início deste ciclo eleitoral, os republicanos controlam 53 lugares no Senado, com a vantagem de, com o vice-presidente, poderem quebrar qualquer empate a seu favor. No Arizona, um antigo bastião republicano, local de origem de John McCain ou Barry Goldwater, encontra-se à beira de eleger um segundo senador democrata. A incumbente Martha McSally está prestes a perder o lugar para Mark Kelly, um antigo astronauta, que consumará a viragem azul do Arizona. No Colorado, de igual forma, Cory Gardner está prestes a perder para John Hickenlooper. Para além destas duas corridas, que parecem certas para cair para os democratas, existe ainda uma possibilidade real de mudança no Maine, na Carolina do Norte e no Iowa. Nem tudo serão vitórias para os democratas, contudo. No Alabama, perderão o actual senador, o qual, num estado completamente vermelho, apenas ganhou contra Roy Moore devido às acusações de pedofilia de que este último foi alvo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3 Neste cenário de mudança, é cada vez mais importante observar o Senado. Em primeiro lugar, importa dizer que, no contexto americano, o Senado é a instituição mais contra-maioritária. Todos os estados, independentemente da sua população, elegem dois senadores, o que faz com que a Califórnia, com os seus 40 milhões de habitantes tenha o mesmo número de representantes do Wyoming, cuja população é de apenas meio milhão de habitantes. Em segundo lugar, o Senado tem um lugar central, por exemplo, na reconfiguração dos tribunais, prometida por Mitch McConnel há anos. O líder da maioria republicana do Senado tem promovido uma verdadeira revolução conservadora nos tribunais superiores. Graças a uma mudança legislativa promovida pelos democratas, em 2013, abandonando a maioria qualificada de 60 votos para uma maioria simples na confirmação de juízes, os republicanos conseguiram já, apenas nos quatro anos de Trump, confirmar 217 juízes em tribunais federais. As consequências desta mudança sentir-se-ão por muito tempo. Tribunais historicamente liberais, como por exemplo o Ninth Circuit Court of Appeals na Califórnia, estão neste momento dominados por juízes conservadores. Para termos uma noção da influência do Senado na reconfiguração do mapa judiciário nos Estados Unidos, nos seus oito anos na presidência, Obama apenas conseguiu confirmar 55 juízes.

4 A política americana encontra-se num momento perigoso, mas, ao mesmo tempo, muitíssimo importante e interessante. É importante que a discussão sobre o que se passará no próximo dia 3 vá muito para além da conversa sobre os estados do costume no Midwest e da cintura industrial. São importantes, sem dúvida. Mas a mudança real está a acontecer noutros locais. Aí disputar-se-á o futuro da América e do mundo.

P.S.: Até às eleições americanas, a secção de livros vai de férias. Volta a meio de Novembro.