É em Junho de 2023, era Mário Centeno governador há três anos, que o Banco de Portugal começa a fazer projecções orçamentais, quebrando um longo período em que não se pronunciou sobre as contas públicas e sendo até diferente dos seus congéneres, como por exemplo o Banco de Espanha. E é a partir daí, com Fernando Medina no Ministério das Finanças, que Mário Centeno começa igualmente a fazer alertas para o seu vizinho na Av. Infante D. Henrique, nomeadamente para a necessidade de começar a cortar nas despesas associadas à pandemia. O que causava óbvio desconforto nas Finanças.
A diferença é que, desta vez, o Banco de Portugal e Mário Centeno, na conferência de imprensa de apresentação do Boletim Económico de Dezembro fazem projecções orçamentais mais preocupantes. O que os técnicos do banco central e o governador nos dizem é que Portugal corre o risco de violar as renovadas regras orçamentais europeias e regressar aos défices orçamentais.
A reacção do primeiro-ministro Luís Montenegro foi bastante moderada, especialmente se nos recordarmos do que dizia o anterior primeiro-ministro António Costa e o actual governador do Banco de Portugal, enquanto ministro das Finanças, quando confrontados, na altura, com alertas semelhantes, não do banco central mas do Conselho das Finanças Públicas.
Luís Montenegro limitou-se a dizer que as previsões do Banco de Portugal estão em “contramão” com todas as outras previsões – o que é um facto -, não fazendo considerações que não fossem além de dizer que mais nenhum instituição acompanha “o pessimismo que o senhor governador”.
Recuemos a 2017. Nessa altura, a presidente do Conselho das Finanças Públicas Teodora Cardoso – que entretanto faleceu – afirma que a redução do défice para 2,1% em 2016 tinha sido conseguida com medidas que não eram sustentáveis. Nesse mesmo dia António Costa acusa o Conselho de diminuir os resultados obtidos pelo Governo e de um “monumental falhanço” em todas as previsões de 2016.
As críticas foram tão violentas que Pedro Passos Coelho, na altura ainda líder do PSD, acusa o Governo de imaturidade e pouco apreço pela sociedade civil. “A reacção que os partidos da maioria tiveram foi no sentido mais negativo que se possa imaginar: apoucando, amesquinhando, ameaçando rever a lei” do Conselho de Finanças Públicas]”, afirma Passos Coelho.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mudam-se os quereres, como diz o povo. Vamos sempre a tempo de reconhecer como são importantes as instituições independentes numa democracia. Por isso mesmo é que estes alertas orçamentais, mesmo em contramão, devem sempre ser acarinhados e incentivados, especialmente num país em que o escrutínio é tão difícil de fazer.
O governador do Banco de Portugal está a levar muito a sério duas das suas funções: o de consultor e conselheiro do Governo e o de prestar contas aos cidadãos. É a partir do seu mandato de conselheiro do Governo que Mário Centeno enquadra os alertas orçamentais. E é no objetivo de aproximar o Banco dos cidadãos que enquadra os “Encontros com a Comunidade”, o último dos quais realizado em Coimbra subordinado ao tema “Exportações de Serviços: Educação e Tecnologias de Informação”
Mais informação e escrutínio é sempre melhor do que menos, desde que se institucionalize e não corresponda apenas a fases em que interesses próprios de quem lidera a instituição coexistam com alguma fragilidade do poder político ou outra forma de fazer política.
É público que Mário Centeno é um potencial candidato a Presidente da República, eleições marcadas para Janeiro de 2026. E, para o ser, precisa do apoio do PS de Pedro Nuno Santos e nada melhor do que dar aos socialistas material para fazerem oposição. Como aliás aconteceu. Quer Pedro Nuno Santos quer Alexandra Leitão agarraram-se imediatamente ao que disse o governador para se posicionarem como os grandes defensores da responsabilidade financeira e acusarem o Governo de irresponsabilidade. E reforçou-se ainda essa possibilidade com a notícia de que Pedro Nuno Santos almoçou com Mário Centeno e António José Seguro.
Mário Centeno nunca se inibiu com as criticas aos seus comportamentos, nem quando em poucos meses passou da Av Infante D. Henrique para a Rua do Comércio. Mas neste contexto Mário Centeno corre o risco de transformar o Boletim Económico do Banco de Portugal, e a sua conferência de imprensa, no equivalente à revista da Armada de Henrique Gouveia e Melo. Obviamente de forma bastante mais sofisticada, mas um e outro a tentarem afirmar-se como candidatos à presidência da República. O governador foi questionado na conferência de imprensa sobre os riscos que corria – de os seus alertas sobre as contas públicas serem vistos mais como protagonizados por um potencial candidato do que pelo governador -, mas não quis responder à questão.
Outro problema deste maior intervencionismo do Banco de Portugal nas políticas orçamentais – a par das projeções, o Banco tem realizados estudos sobre os efeitos das decisões do Governo nomeadamente em matéria de IRC e IRS – é, como já vimos, a assimetria do comportamento de Centeno enquanto governador e, no passado, como ministro das Finanças com a liderança do primeiro-ministro António Costa.
Qualquer alerta que fosse feito merecia violentas reacções quer do ministro Centeno como do primeiro-ministro António Costa. Num dos casos, as Finanças avisaram que esperavam que o então governador Carlos Costa se retratasse depois de ter dito numa conferência que as ameaças à independência dos bancos centrais “não é só dos países do sul. (…) Não é só uma questão dos portugueses (…)”. Antes já tinham entrado em confronto por causa do então BES/Novo Banco e sobre os dividendos do Banco de Portugal. Este problema apanhou igualmente Mário Centeno agora como governador, altura em que se viu também em conflito com o ministro das Finanças Joaquim Miranda Sarmento. Centeno-governador já diz que o Banco de Portugal não serve para gerar dividendos.
Em matéria de contas públicas, o Banco de Portugal tinha-se colocado à margem dessas análises praticamente desde a crise de 1993, quando fez uns alertas que também não agradaram ao então governo liderado por Aníbal Cavaco Silva. Esse afastamento, do quente tema orçamental, reforçou-se quando Vítor Constâncio então governador se viu obrigado a avaliar as contas públicas, primeiro com o PSD de Durão Barroso e depois com o PS de José Sócrates – neste caso com o Governo a usar o papel de consultor do Governo que o Banco de Portugal tem.
O nascimento do Conselho das Finanças Públicas, muito defendido pelo então governador Carlos Costa, instituição nascida na era da troika, deu ao Banco de Portugal mais uma razão para não se envolver em análises ao Orçamento. Limitava-se a fazer a descrição anual, sem comentários analíticos e muito menos projecções.
E nesta matéria orçamental a irritação de Mário Centeno e do primeiro-ministro António Costa transferiu-se para o Conselho das Finanças Públicas. Teodora Cardosa, como já vimos, foi vítima de violentas criticas do Governo de António Costa, que não descansou enquanto não a substituiu. Entre essas críticas estiveram os erros de previsão.
É esse o risco, de erros nas previsões, que Mário Centeno também corre, ou antes, o Banco de Portugal porque quando existirem resultados, algures em meados de 2025, o governador deve estar à espera de já não ser governador. E, por isso, um eventual dano de credibilidade recairá sobre a instituição que não teve meios para se defender.
Quando tentamos conciliar os dados do Banco de Portugal e do Governo, em matéria de despesas adicionais e de receitas perdidas em 2025, na sequência das medidas adoptadas, entramos numa selva de números, sem conseguirmos perceber quem tem razão. E aqui quer o Governo como o Banco de Portugal pecam por falta de explicação
Independentemente de poder fazer alertas que são especialmente importantes num Parlamento tão fragmentado como o que temos agora, o Banco de Portugal poderia e deveria ter sido um pouco mais prudente. Dizer que vamos ter um défice orçamental de 0,1% em 2025 tem um risco enorme. Basta que Joaquim Miranda Sarmento poupe menos de 300 milhões de euros – com a actual previsão para o PIB – para Portugal ficar em equilíbrio orçamental e o Banco de Portugal cometer um erro na previsão. O mesmo não se pode dizer da previsão de défice de 1% em 2026, mas todos sabemos o momento de incerteza em que vivemos e como as previsões são frágeis mesmo a um ano, quanto mais a dois.
O próprio governador do Banco de Portugal deveria ter-se recordado do seu tempo de ministro das Finanças para perceber o quão arriscado é fazer previsões orçamentais quando não se está dentro do Governo. Devia ter olhado para os erros que muitos cometeram – em que me incluo – quando consideravam impossível atingir os objetivos orçamentais a que se propunha. A ninguém obviamente passou pela cabeça que Mário Centeno e António Costa, através das cativações, iam colocar a “pão e água” a administração pública, naquilo que não se via e só se ia sentir a prazo (agora).
Joaquim Miranda Sarmento terá dificuldade em seguir essa estratégia de “pão e água”, uma vez que estamos na fase do cavalo do escocês, em risco, não de morte, mas de colapso dos serviços públicos. Mas tem muitos instrumentos que lhe permitem poupar mesmo os cerca de mil milhões de euros que o Banco de Portugal diz que é preciso cortar para não violar as regras europeias. O poder da execução orçamental é uma lição que nos deu Mário Centeno ministro das Finanças, mas que foi esquecida, em parte, por Mário Centeno governador do Banco de Portugal.
O governador do Banco de Portugal, ex-ministro das Finanças e ex-presidente do Eurogrupo tem conseguido até agora conciliar os seus diversos papéis em planos até agora bem-sucedidos e com elevada popularidade. Pouco parece importar que faça agora o que criticou violentamente ao seu antecessor, assumindo um protagonismo político que arrisca a credibilidade do banco central, mas que o pode levar até Belém. Enquanto sociedade civil ganhamos mais escrutínio, importante numa altura em que o Parlamento fragmentado podia ser uma ameaças à disciplina financeira. Pode ser que o regresso do Banco de Portugal às análises orçamentais tenha mais proveitos do que custos e se consiga manter para além de Centeno, mas com maior prudência.