Estamos a dar os primeiros passos no Novo Ano. E, como é da praxe, despedimo-nos do ano velho com balanços e análises que preencheram páginas de jornais e revistas, e ocuparam muito tempo de antena – demasiado, talvez – nas televisões, generalistas ou temáticas.
Diz a sabedoria popular que “o futuro a Deus pertence”. Infelizmente, no reino dos homens, não falta quem duvide e quem conteste mesmo que “Deus escreve direito por linhas tortas”, outra metáfora.
O certo é que para os lados do PS voltou a invocar-se o diabo, como se fosse uma parábola alimentada pela direita, quando na verdade a queda do governo deve soar a muitos socialistas, com receio de perderem sinecuras e mordomias, como uma desgraça, só explicável pela mediação demoníaca…
Bem apregoou António Costa, respondendo com o habitual azedume a Pedro Passos Coelho – que classificou a sua demissão como “indecente e má figura” –, que “deve ser muito cansativo estar há oito anos a contar dia após dia à espera que o diabo chegue” e que “o diabo nunca mais chega e depois sai isto”.
Para um não crente, sem fé em Deus nem, obviamente, no Diabo, a urgência de Costa em “dar troco” a Passos Coelho só pode ser interpretada como um artifício com o qual quis afastar temas mais embaraçosos.
O certo é que a derrocada da maioria absoluta socialista, a meio da legislatura, se não foi obra de Belzebu, quem mais poderia estar por detrás do volte-face de uma posição confortável, suporte de um governo minado por dentro, com vários actores a contas com a Justiça?…
Tudo saiu em contramão.
É verdade que há muito se dizia que Costa andava “cansado” e farto de estar ao balcão da “loja” a resolver o “rol de fiados”, desejoso de fazer a mala e “dar o salto” para um cargo europeu, onde pudesse aplicar os seus variados talentos.
Reconheça-se, porém, que não contaria sair pela porta baixa, como vai acontecer, sem lograr, sequer, ter uma palavra na designação do seu “herdeiro” no PS.
Pior: com a precipitação das coisas, em vez de gozar de uma influência decisiva na indigitação do sucessor no partido, saiu-lhe “a fava” com Pedro Nuno Santos, eleito pelos militantes assustados, hipótese que muito provavelmente não constaria das suas opções, mais voltadas, segundo fontes insuspeitas, para Fernando Medina, o fiel “escudeiro” desde a autarquia lisboeta.
Falhada a estratégia sucessória, o passo seguinte foi mostrar-se “disponível“ para participar na campanha eleitoral de Pedro Nuno, talvez um pesadelo para ambos.
Depois, graças ao parágrafo de um comunicado da Procuradoria – supostamente uma “maldade” com assinatura de Lucília Gago –, Costa acabou por ficar cativo das investigações do Ministério Público e do que vier a ser decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, um travão inesperado para as suas ambições europeias.
Mas nem tudo são apoquentações para o PS. Para compensar, a PGR tirou “da manga” um inquérito aos benefícios fiscais alegadamente atribuídos à casa de Luís Montenegro, em Espinho, dando seguimento a uma oportuna “denuncia anónima”.
E assim se equilibram as coisas, à boca da campanha eleitoral. Recorde-se, a propósito, que no Verão passado houve uma aparatosa operação de buscas policiais à sede do PSD e à casa de Rui Rio, com as televisões a reboque, da qual nunca mais houve notícia, como se tivesse sido um “fait divers” de Verão. Costa solidarizou-se. O aparato esfumou-se. Um mistério.
Em contrapartida, e seguindo, talvez, a mesma lógica de “compensação”, Marcelo Rebelo de Sousa tem-se esforçado em encorajar Costa, antevendo, premonitório, que este “tem condições para vir a ser presidente do conselho europeu”, quando ambos sabem que esse desiderato ficou irremediavelmente comprometido, atendendo às suspeitas do Ministério Público, largamente difundidas e comentadas na imprensa internacional. E não foram meigos.
Há quem admita, por isso, que António Costa poderá estar, politicamente, no fim da linha, substituído no partido por quem não queria – um fanfarrão imprevisível – e com a aposta europeia em risco.
Não lhe saiu bem o ano findo. E, em qualquer cenário, estará sempre a perder.
Se o PS ganhar as legislativas com Pedro Nuno, prova-se que o País, que aguentou estoicamente o “optimista irritante”, rendeu-se ao improviso, à precipitação ou mesmo à imaturidade, em vez de experimentar a mudança de quadrante ideológico.
Se o PS perder, os descontentes, entre os “boys” e as “girls” que ficarão no desemprego, farão fila a responsabilizá-lo por aquilo que fez… e que não fez.
Em ambas as hipóteses, Costa não “ficará bem na fotografia”.
Foi neste enquadramento, e com a tentação de atribuir a queda do governo e a dissolução do parlamento à “judicialização da política”, que foi notório o esforço de Augusto Santos Silva ao sair em defesa de correligionários, designadamente de primeiros ministros socialistas alvos de investigações do Ministério Público.
Convirá não esquecer, por exemplo, que já em 2014, a propósito de uma “missiva de protesto” enviada por Ascenso Simões a Cavaco Silva, na qual insistia para que o Presidente condecorasse o ex-primeiro ministro José Sócrates, o actual líder do parlamento recorria ao sarcasmo, para “contrariar” o deputado socialista e “aconselhar” o então Presidente da República para que “não condecore Sócrates. É que ele não merece tamanha nódoa no seu currículo”.
E foi então mais longe na sua diatribe, ao asseverar que “haverá certamente dentro em breve, um Presidente merecedor da honra de condecorá-lo”.
Enganou-se. Volvida uma década, nem a Justiça conseguiu julgar Sócrates, cujos processos que sobraram da “peneira” do juiz Ivo Rosa estão à beira de prescrever; nem o Tribunal da Relação se pronunciou sequer sobre o recurso do MP, entregue há um ano, nem o ex-primeiro ministro foi condecorado.
E ei-lo novamente arvorado em “pronto-socorro”, fiel ao primeiro ministro demissionário, acusando a procuradora geral da República de ter “uma cultura pouco democrática” por defender a “honra da casa” na operação “Influencer” que envolveu António Costa.
Ao colocar Lucília Gago no pelourinho, Santos Silva parece distraído do facto de ser ainda a segunda figura do Estado, por muito fraca figura que tenha feito enquanto presidente da Assembleia da República.
Ao dizer o que disse numa entrevista à Antena Um, Santos Silva está objectivamente a pressionar a Justiça, que tanto embaraça hoje António Costa – como embaraçou Sócrates, de quem foi um dos mais chegados e devotos colaboradores.
É mais uma polémica estéril surgida nas despedidas do ano velho, que enfraquece as instituições e penaliza quem deveria limitar-se a promover a confiança na Justiça, como pilar fundamental do Estado de Direito.
Infelizmente, Santos Silva não tem emenda e ainda não aprendeu a por de parte a sua arrogância conflitual, desde que reivindicou o gosto de “malhar na direita”, uma idiossincrasia que lhe ficou agarrada à pele.
É um actor político que já foi quase tudo em sucessivos governos, e que corre o risco de ser apontado como um dos piores presidentes da Assembleia da República, o que parecia improvável depois do mandato de Ferro Rodrigues.
Neste novo ano, que celebra meio século do 25 de abril – e o quase esquecido quinto centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões (sem ter sequer dotação orçamental no OE…) –, haverá que eleger, entretanto, um novo parlamento e um novo governo.
Quando António Costa se despediu com uma mensagem de Natal edílica, que pareceu respeitar a outro planeta, é importante que se saiba onde estamos e para onde fomos empurrados.
O seu “legado”, quando cessar funções na primavera, não vai deixar saudades. Em contrapartida, deixa um País socialmente assimétrico, com muita pobreza envergonhada e resignada à sua (má) sorte.
O “render da guarda” não vai ser bonito de se ver…