Um sonho por realizar será uma mentira / Ou será coisa pior / Que me empurra para o rio / Embora eu saiba que o rio está seco (Bruce Springsteen, “O Rio”)
Vai para duas décadas, durante os dois minutos em que reparei no assunto, o dr. Rio pareceu-me um autarca razoável na medida em que irritou as pessoas certas. Desde que é chefe do PSD, o dr. Rio irritou as pessoas erradas. No caso, a pessoa errada: eu próprio. Enquanto líder da oposição, se é que podemos dizer assim, o dr. Rio irritou-me imenso. O dr. Rio assume um “estilo” (palavra dele). E esse é que é o problema.
O seu “estilo” de fazer oposição consistiu em não fazer oposição nenhuma. Nestes seis anos em que, coadjuvado por uma parelha de agremiações leninistas, o PS levou a cabo um projecto sem precedentes de conquista do Estado, submissão da sociedade e atraso do país, o dr. Rio manteve-se genericamente calado. Às vezes, dava uns pios, raramente para criticar os socialistas, frequentemente para facilitar os respectivos avanços e prepotências – por exemplo na supressão dos debates quinzenais e das liberdades a pretexto da Covid. Em regra, porém, o dr. Rio só abria a boca para criticar dissidentes internos do seu “estilo”, ou os jornalistas que não “passavam” devidamente o “estilo” ao eleitorado. Com regularidade, o dr. Rio também falava para informar os incréus da localização geográfica do PSD, que ora está ao centro-esquerda, ora ao centro, ora em qualquer lugar que não afugente o dr. Costa e não comprometa o sonho do dr. Rio: ser convocado pelo dr. Costa para escoar as migalhas do poder.
Mas tudo isso é passado. Agora, o dr. Rio promete oposição a sério. Agora, em pleno processo de “directas” no PSD, o dr. Rio garante que nem sequer fará campanha contra Paulo Rangel para se concentrar nos ataques ao governo. Agora não contem com piedade ou cedências. Agora é que elas mordem. Agora, meus amigos, é que vai ser. E o que tem sido? O costume: o dr. Rio ocupa o tempo a insultar a cáfila de malfeitores empenhada em enxotá-lo do cargo. Nos intervalos, admite toda a sorte de acordos, alianças, pactos, tratos e contratos, incluindo, principalmente, com o PS. O dr. Rio não tem cura. E o pior é que ele não se acha doente. Num certo sentido, o dr. Rio não está doente. Este é o seu estado normal.
Com o respeito possível, o dr. Rio não parece um sujeito brilhante. Como muitos sujeitos limitados, acha-se portador da Verdade, com maiúscula. Sem maiúscula, o dr. Rio possui uma espécie de “estratégia”. O homem convenceu-se que, havendo a paciência necessária, a dele e a dos militantes do PSD, um dia os destinos da nação caem-lhe no regaço, através do cargo de primeiro-ministro, ou do cargo de vice, que já o satisfaz. Não é uma ideia demasiado absurda, ou pelo menos não é mais absurda que a nossa paisagem “institucional” (tosse). Se figuras do calibre do prof. Marcelo e do dr. Costa chegaram onde chegaram, são legítimas as ambições, aliás modestas, do dr. Rio. Em teoria, a “estratégia” não é má. Na prática, a “estratégia” é péssima, e as consequências devastadoras.
É que, perdido em guerras no partido e na vastidão do próprio umbigo, o dr. Rio esquece-se da existência de um país. E que o país, que nem sempre deve ser confundido com os portugueses, não suporta (na acepção de “resistir”) a continuação do caldo de desonestidade, arbitrariedade e fanatismo colectivista que há anos o dr. Rio vem suportando (na acepção de “permitir”, “ajudar” ou “aplaudir de pé”). Para cada português que não seja o dr. Rio e os aficionados assumidos ou disfarçados do dr. Rio, a sobrevivência ou o falecimento políticos do dr. Rio são de uma monumental irrelevância. Num mundo ideal, a função do dr. Rio seria oferecer uma alternativa à selvajaria do PS, de modo a contrariar o PS e, se a coisa corresse benzinho, a derrotar o PS. No mundo real, o dr. Rio não o fez, não o faz e, a julgar pelas recorrentes ameaças de “bloco central”, não o fará. Porque não quer, porque não sabe e se calhar porque não pode: descontadas a contabilidade de um e a manha do outro, pouca ideologia distingue o dr. Rio do dr. Costa.
No fundo, e à superfície, é simples: o PS, aquele que se alia a comunistas ou aquele que não se distingue de comunistas, está a caminho de nos reduzir a uma filial ibérica do “bolivarismo”. Até ver, sozinho ou acompanhado, o PSD é a única força partidária capaz de o impedir. Está provado que o PSD do dr. Rio não salvará a pátria. Entretido a tentar salvar o dr. Rio, o PSD do dr. Rio nem salvará o PSD. Antes que o dr. Rio enterre literalmente o PSD, convirá que o PSD enterre figurativamente o dr. Rio.
Um parágrafo pequenino para o dr. Rangel. O dr. Rangel, candidato decorrente de múltiplos compromissos, tem uma enorme virtude: não é o dr. Rio. Falta perceber quem é. Restam umas semanas.