O salário mínimo terá tido em 2022 um aumento de 39,6% em relação a 2015, passando de 505 para 705 euros. A produção portuguesa deverá crescer, no mesmo período, 12,4%, levando em conta os dados e previsões da Comissão Europeia. Um cabaz de cem euros em 2014 custava no ano passado 103,8 euros, de acordo com os dados do INE para a inflação, podendo atingir os 107.8 euros se admitirmos uma subida de preços da ordem dos 4% em 2021 e 2022. É difícil encontrar um dado na economia que justifique a subida de quase 40% do salário mínimo em seis anos. E estas inconsistências pagam-se, como já sentimos violentamente na pele quando o excesso de dívida nos condenou quase à bancarrota em 2011.

Mas é justo, dirão. Claro que é justo. O salário mínimo é demasiado baixo em Portugal, como aliás os salários em geral. Infelizmente a justiça duradoura não se constrói assim. A pergunta é: terão as empresas capacidade para pagar esse salário? A resposta é “não”. E é tanto negativa quanto o próprio Governo o reconhece e tem reconhecido desde 2015, ainda com Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, criando mecanismos para compensar esta subida.

O primeiro modelo, com Pedro Passos Coelho, passou por uma redução na Taxa Social Única para compensar a subida do salário mínimo. António Costa, na primeira legislatura, tentou fazer o mesmo, mas o PCP e o BE votaram contra assim como o próprio PSD, na altura ainda liderado por Pedro Passos Coelho. Entrou-se então na via de dar dinheiro às empresas.

No próximo ano, em que o Governo decidiu aumentar o salário mínimo de 665 euros para 705 euros, serão pagos 112 euros anuais por trabalhador que receba hoje a remuneração mínima e 56 euros para quem receba abaixo do novo valor e acima do actual. Diz o Governo que espera gastar 100 milhões de euros do Orçamento do Estado com esta medida de compensação que também já foi aplicada este ano. Mas em 2021 gastou apenas 33 milhões de euros abrangendo pouco mais de 80 mil empresas.

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A primeira questão que se coloca é esta: se o Governo sabe que as empresas não têm capacidade para pagar aumentos do salário mínimo desta dimensão porque é que o sobe? Por razões de política pura.

A segunda questão é: até quando vai o Orçamento do Estado continuar a compensar as empresas pela subida do salário mínimo? Para sempre? Com que objectivo? E tem consciência das distorções que cria ao seguir esta política?

Embora o montante de 2021 tenha acabado por não ser significativo – em média deu pouco mais de 400 euros anuais por empresa –, o sinal que se dá é: paguem o salário mínimo que nós pagamos uma parte. Existe aqui um incentivo, mínimo que seja, para que as empresas mantenham essa sua política, como refere Pedro Sousa Carvalho aqui, nas Contas do Dia, na Antena 1.

Mas se falarmos com quem vive quotidianamente os problemas das empresas, há problemas mais graves que podem até estar a alimentar injustiças e desigualdades.

As empresas, nos seus orçamentos, definem em geral uma dotação para aumentos salariais. Um aumento da massa salarial de 6% – o crescimento do salário mínimo em 2022 – é bastante significativo nos tempos que correm. Tal significa, como alerta quem está ligado à gestão das empresas, que todo o orçamento para aumentos salariais pode ficar esgotado nas pessoas com salário mínimo, não se fazendo actualizações aos outros trabalhadores. E assim se cria uma injustiça, prejudicando os mais qualificados. Este condicionalismo já começa a ser visível nos grandes números, com o salário médio a aproximar-se do salário mínimo.

Repare-se que este tipo de política gera ainda o risco de desincentivar a qualificação. Como a diferença salarial por mais formação pode ser mínima, em qualificações médias, o que o Governo acaba por estar a fazer é a desincentivar a formação. Na prática, está a replicar no sector privado aquilo que já se fez na administração pública – os salários mais baixos são relativamente elevados quando comparados com o sector privado, enquanto os quadros superiores estão mal pagos. O que, como tem sido dito e há muito diagnosticado, tem criado dificuldades de atracção de pessoas qualificadas para o Estado. As empresas vão acabar por ter exactamente o mesmo problema. E, se conseguirem, aumentam os outros salários, se não conseguirem, morrem. A prazo é isso que pode acontecer, na linha com o que se tentou fazer no passado, como veremos adiante.

Depois temos as actividades cuja receita, e por vezes também a despesa, está praticamente pré-definida, como acontece nos contratos públicos. É um problema especialmente grave nos transportes e no sector social, como alerta quem conhece os sectores. Como o Governo depois não revê esses contratos, o que está a fazer é a estrangular essas actividades. O resultado, em algumas empresas, é o abuso das pessoas que lá trabalham – e eis uma nova injustiça.

Mais uma vez o Governo respeita a sua grande linha de acção: tomar decisões com enorme impacto mediático e político e desprezar todos os outros efeitos. Há um limite para este tipo de actuação e, é inevitável, vamos pagar estes erros.

Se a ideia é forçar o aumento dos salários através do salário mínimo, então era preciso levar esta subida até às últimas consequências. Forçar, através do salário mínimo, a melhor gestão ou à morte. Na prática seria usar o salário mínimo para fazer uma espécie de “valorização competitiva”, numa política muito semelhante à defendida, na primeira metade da década de 90 do século XX, pelo então vice-governador do Banco de Portugal António Borges. Na altura, defendeu a valorização do então escudo como forma de forçar as empresas a serem mais competitivas. E as que não conseguissem, morriam. Pode ser um exagero, mas as propostas de aumentos do salário mínimo do PCP – que levaram até ao chumbo do Orçamento – correspondem, nas suas grandes linhas, àquilo que António Borges tentou fazer.

Todos sabem que o caminho não é por aqui. O aumento do salário mínimo resolve o problema das pessoas que o recebem – o que obviamente não é pouco –, mas resolve-o a curto prazo. Porque todos sabem que esta via não é duradoura e, mais cedo ou mais tarde, veremos, outra vez, o salário mínimo congelado se a economia continuar a registar uma taxa de crescimento da ordem dos 2%.

O Governo tem responsabilidades neste beco em que nos está a meter – até porque tem decidido unilateralmente estes aumentos, sem qualquer acordo na concertação social, como devia acontecer. Mas os empresários e os sindicatos também. Há medidas que os empresários deviam fazer questão que se adoptassem e que, essas sim, tinham condições para nos tirarem deste crescimento medíocre. Entre essas medidas estão os custos associados à burocracia que enfrentam, os custos da falta de qualidade dos serviços públicos, muitos deles mais virados para dentro do que para fora, os custos associados aos tribunais administrativos e fiscais.

A falta de coragem política e a mão estendida de uma parte da classe empresarial explicam a naturalidade com que se aceita que o aumento do salário mínimo seja pago com os impostos dos portugueses, com que se aceitam os efeitos negativos desses aumentos na justiça interna das empresas e até na sua capacidade de garantir os serviços que o Estado contratou.

O que acontece atrás do pano do teatro do aumento salarial não parece importar a ninguém, não importa que alguns trabalhadores sejam ainda mais explorados, para se garantir o contrato com o Estado, que não o actualiza para fazer face ao aumento do salário mínimo, não importa que todos os outros que estão na empresa, até com mais qualificações, não sejam aumentados, não importa, ainda, que todos saibam que a prazo nenhuma economia a crescer 12% em seis anos aguenta aumentos de salários mínimos de 40%. A justiça e o combate contra a desigualdade não se conseguem assim.