É comum afirmar-se que não se pode — ou não se deve — olhar o passado com os olhos do presente e eu diria que a maior parte das pessoas concorda, mesmo que apenas intuitivamente, com esta afirmação. Há, todavia, muitos activistas woke que a contestam e como se julgam os únicos ungidos pelo deus da inteligência, consideram que essa afirmação é ignorante ou pior.

Tomemos um exemplo. Ao comentar um recente programa de debate da RTP sobre reparações, e querendo precisamente contestar a ideia de que não devemos olhar para o passado com os nossos olhos actuais, António Pinto Ribeiro (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) lançou o seguinte desafio: “então devemos olhar com os olhos de quem? Este tipo de argumento, não sei se é ingénuo, se ignorante, se apenas uma forma de tolerar a escravatura. Em todo o caso, é uma afirmação que nada tem a ver com a história, que não é uma entidade ontológica, apenas uma narrativa”.

Sendo-lhe contraposto — e bem — pelo historiador João Paulo Oliveira e Costa que “a história explica o passado, mas não julga o passado”, Pinto Ribeiro respondeu desta forma: “a história não julga, mas também não absolve e sobretudo fornece ferramentas e instrumentos para que as instâncias adequadas façam o julgamento. A escravatura não é um problema da história — por mais que isso custe à pretensa centralidade de alguns historiadores — é um problema da humanidade.”

Nesta última passagem António Pinto Ribeiro faz lembrar um daqueles relógios de ponteiros parados que, sem querer, dão horas certas duas vezes por dia. De facto, a escravatura a que ele se refere — e que se debatia no referido programa da RTP — não é, mas já foi um problema da humanidade. Foi por razões de humanidade (e, também, de economia política e outras) que o Ocidente se virou contra a escravatura. Aparentemente Pinto Ribeiro não sabe — mas acertou por acaso, como o tal relógio parado — que no século XIX o combate ao tráfico de escravos se designava justamente por “causa da humanidade”. É assim que aparece referido no texto dos tratados, nos discursos parlamentares, em artigos de jornal, etc. Felizmente esse combate pela “causa da humanidade” foi ganho nesse século, o tráfico de escravos e a escravidão acabaram e deixaram de ser um problema da humanidade para se tornarem num puro assunto de História.

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Mas voltemos à questão essencial que Pinto Ribeiro nos colocou: “então devemos olhar (para o passado) com os olhos de quem?” A resposta é simples: com os olhos das pessoas daqueles tempos. Para evitar mal-entendidos e falsas questões, e mesmo arriscando ser redundante, talvez seja útil precisar que o que está em causa não são os olhos no sentido físico da palavra, pois, na verdade, não temos outros senão os que a nossa biologia nos deu. Julgo que toda a gente, incluindo António Pinto Ribeiro, percebe e aceita que quando usamos essa expressão estamos a referir-nos à forma de compreender e avaliar uma época e aqueles que nela viveram, os seus problemas e o modo como os solucionaram. Quando usamos a expressão “não devemos olhar…” o que queremos dizer é que não devemos aplicar ao passado os valores e juízos morais que actualmente tomamos por bons e virtuosos. Devemos olhar esse passado, bem como os comportamentos e decisões dos que nele viveram, à luz dos valores e das avaliações morais comuns e aceitáveis nesse tempo.

Leslie P. Hartley, o escritor inglês que foi autor, entre outras obras, de The Go-Between (O Mensageiro), um romance adaptado ao cinema por Joseph Losey, disse em poucas palavras o essencial: “o passado é um país estrangeiro; lá as coisas fazem-se de forma diferente” (“the past is a foreign country; they do things differently there”). Quem tiver curiosidade (ou nostalgia) poderá espreitar The Go-Between neste trailer, que começa justamente com essa frase. E eu gostaria de lhe acrescentar, o seguinte: no passado não só se faziam as coisas de forma diferente, como se pensavam de forma diferente.

E é precisamente isso, ou seja, essa diferente maneira de fazer e de pensar que os historiadores — sobretudo os historiadores das ideologias e das mentalidades — tentam captar. Isso é não apenas possível, mas também muito desejável ou até imprescindível. Da mesma forma que um actor se coloca nos sapatos de um personagem e do seu mundo para o fazer viver em palco, nós podemos, se fizermos um esforço e conhecermos a peça, colocarmo-nos nos sapatos de um português do século XV e ver o mundo pelos seus olhos. Porque sim, António Pinto Ribeiro, a História é uma narrativa. Mas, ao contrário de outras narrativas — como a novela, por exemplo — não lhe basta ser interessante e verosímil. A História é uma narrativa que tem um compromisso férreo com a verdade. É esse compromisso que obriga os historiadores a dizerem aos seus leitores que para uma pessoa do século XV — Gomes Eanes de Zurara, por exemplo — o tráfico de escravos e a escravidão não eram crimes contra a humanidade, como agora são para António Pinto Ribeiro, para mim, para todos nós. Eram práticas dolorosas, sim, mas não eram crimes. Podiam até ser vistos como  um possível motivo de galardão ou de louvor.

Sublinho o essencial: não podemos — ou não devemos — olhar o passado com os olhos do presente porque no passado faziam-se e pensavam-se as coisas de forma diferente. O que os historiadores justamente querem é descobrir e perceber o segredo dos olhos dos que, no passado, olhavam os acontecimentos e viviam os dilemas desses tempos. O que querem é perceber a diferença de sensibilidade que levava a que um romano dissesse céu sereno ao passo que nós preferimos dizer céu azul. O que os historiadores querem — chama-se a isso História Comparada — é compreender e explicar porque é que um general mongol podia exterminar milhares de pessoas sem um estremecimento ou uma censura, ao passo que, no século XX, e mesmo em plena guerra, um general norte-americano como Patton foi afastado por ter batido e amesquinhado publicamente um soldado. São esses diferentes olhos que temos de perceber se queremos entender o passado e o que o diferencia do presente. É claro que, para isso, é preciso conhecer esse passado, saber o que as pessoas então pensavam, e isso dá muito trabalho, exige muitos anos de estudo. Se não quisermos ter essa maçada é só ir dizendo umas larachas politicamente correctas e continuar o arraial woke.

Ah, e só mais um esclarecimento: o trabalho da História não é fornecer dados às instâncias judiciais, ao contrário do que António Pinto Ribeiro afirmou. Os historiadores não são comissários de polícia. São apenas gente que gosta de investigar o passado e de tentar perceber (e explicar) como ele era e como as coisas mudaram. É essa a sua vocação e são essas as suas funções. A obsessão com a culpa e a justiça retroactiva é uma doença do wokismo, mas não é um problema da História.

PS: Para quem não estiver familiarizado com o pensamento de Pinto Ribeiro sobre estas matérias, e quiser conhecê-lo melhor, deixo este link que julgo ser suficientemente esclarecedor.