A política nacional está dominada por políticos sem-vergonha. É o semvergonhismo como ideologia, como estratégia e como garantia de sucesso na política. Com honrosas excepções, é assim. Tudo terá começado há mais de 15 anos e teve farta descendência.
A vaga de corruptos, populistas e mentirosos assolou as instituições: Governo, Parlamento, oposição. O povo olha com normalidade a anormalidade. E vai vingar-se nas próximas eleições. Como toda a vingança, não será nada de recomendável, mas será inevitável.
Quais as origens deste surto do semvergonhismo? Os políticos que temos no poder, em sentido lato, são o resultado de regras de funcionamento da sociedade e do mundo da política. Não falo apenas das leis, mas de toda a envolvente sociológica de funcionamento do social e do político.
Como foi possível chegar aqui? Penso que há três factores que conjugados nos conduziram a esta situação. Primeiro, a lei eleitoral em que não votamos em pessoas, mas em listas obscuras cozinhadas pelos partidos. Quem quer entrar na lista tem de ter estômago para obedecer e bajular. Tem de ter pouca-vergonha. É, assim, urgente alterar a lei eleitoral.
Segundo factor, tem sido o papel das juventudes partidárias. Estas são escolas de seleção dos mais espertos, dos mais hábeis na táctica da traição e dos mais useiros na falta de palavra. Com honrosas excepções, selecionaram-se os mais sem-vergonha. Eles estão hoje a dominar a política portuguesa.
Terceiro factor desta senda do semvergonhismo são as redes sociais.
Ir para o Governo, qualquer que ele seja, ou para o Parlamento implica ser acusado de ladrão, vigarista e coisas piores nas redes sociais muito antes haver qualquer suspeita. No passado, quando a comunicação se resumia a jornais e televisão, se tal acontecesse havia o recurso a tribunais, indemnizações e outros instrumentos de prevenção do vilipêndio gratuito. Nas redes sociais tal é impossível. As “notícias” são difundidas e espalham-se de forma que é impossível tal defesa. Os seus autores, se quiserem, refugiam-se cobardemente no anonimato. Quem por lá passou sabe exactamente do que falo. Há mesmo, como já sabemos, quem faça disso profissão e seja um profissional da disseminação da mentira e do insulto nas redes sociais a soldo de adversários políticos. Esta “profissão” deveria ser severamente punida.
Portanto, a única defesa é não ligar, nem dar importância. Ou seja, só pode ir para cargos públicos quem tem uma carapaça dura para ser indiferente a estas ofensas e não ficar deprimido pela vergonha do ataque à sua honra. Mas personalidades de “carapaça dura”, condição necessária para se ser político, rapidamente pode resvalar para políticos sem-vergonha.
Uma personalidade “sem-vergonha” é alguém capaz de não ter vergonha de usar a demagogia do populismo e consagra-se um mentiroso na luta política. É o mundo em que vivemos do semvergonhismo.
Os mais consagrados do semvergonhismo complementam o seu salário (ridiculamente baixo) e o financiamento do partido com a corrupção. É só mais um passo, como vimos no passado não distante e ao mais alto nível.
O mais importante é percebermos que o desaparecimento da vergonha é o fim de um travão para comportamentos socialmente inaceitáveis. A vergonha é a razão para muitas pessoas cumprirem a lei: têm vergonha de serem apanhados. A vergonha como modelador social é fundamental e esse despareceu da vida política com políticos sem vergonha. A ideologia do semvergonhismo campeia e tem sucesso. Há políticos que são excepções, mas a percepção é que são apenas excepções e não a regra. Muitos fogem da vida política, exactamente por causa dessa percepção da opinião pública, porque têm vergonha.
Há muitos anos, lembro-me de uma senhora muito humilde e de avançada idade me ter dito que era uma pessoa de muita vergonha. Ela queria com isso dizer-me que era uma pessoa muito honesta. Nunca mais esqueci.