Quando sangue e lágrimas se fundem em morte e sofrimento, a paz revela-se estrangeira em terra pátria. Não podemos permanecer cegos relativamente à Rússia. Não podemos continuar a subestimar o poder da ambição ideológica. E não podemos adormecer ao som da Paz enquanto munimos os nossos soldados com politiquices que nos iludem para o Fim da História[1].

Quem é que hoje acredita que as Forças Armadas são para desmantelar? Quem tem coragem de dizer que as armas morreram e que a guerra contemporânea é outra? Ninguém quer ouvir a verdade, mas aqui vai ela: quando tudo corre bem esquecemo-nos de como nasceu a Paz. Esquecemo-nos das vidas perdidas dos nossos antepassados. Esquecemo-nos dos líderes da sociedade civil, de Péricles e de Arquidamo, de Winston Churchill e dos Federalistas; dos fundadores da sabedoria grega e da filosofia eclética universal. Esquecemo-nos dos ditadores da História e das suas ideologias aniquiladoras. Esquecemo-nos de tudo. Esquecemo-nos da essência humana, do pecado original, da queda do Homem, de Caim e Abel, do fruto proibido. Esquecemo-nos do contrato social de Thomas Hobbes, do direito à revolução de John Locke, do Príncipe de Maquiavel e respetivos: Moisés, Ciro, Teseu e Rómulo. Pura e simplesmente esquecemo-nos!

Esquecemo-nos porque é fácil. Porque viver num mundo onde a bondade é paradigma seduz-nos mais que ópera aberta no Scala. Mas nem todos os eruditas fidalgos e plebeus apreciam música e teatro. A verdade é outra. A dura verdade é que o Homem, não sendo naturalmente mau, não é genuinamente bom; e que por isso procura a cura para a solidão através da fama e do poder. A verdade é que o poder subtrai valores e cultura ao submeter os fracos à vontade e capricho dos economicamente fortes, mas de espírito fracos. A verdade é que a Paz é uma borboleta que voa de ombro em ombro à procura de atenção, para se ver ignorada eternamente. A verdade é que ser-se bom é ser-se vulnerável perante a arrogância dos excêntricos e o ego dos presunçosos. A verdade vale hoje menos que a mentira.

Jordan Peterson alerta-nos para a ordem, o caos, e algo que os medeia: a consciência. Pergunto-vos onde ela andará. Ninguém sabe, poucos a querem pensar, um ou outro menciona-a numa discussão política à mesa de jantar. “A moral dos imoralistas”, dizem os profetas ateus. Que mundo é este? Matámos Deus, disse Nietzsche, mas também matámos A Ética de Aristóteles. Não sei o que esperar do futuro mas sei que também o Presente se tornou incerto, e que a fé morreu antes do próprio ditado.

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Os nossos militares precisam de armas para lutar pelos seus países! A diplomacia falhou perante a causa Europeia. Somos vulneráveis no novo tabuleiro de xadrez porque as regras são outras: o bluff revolucionou-se, a linguagem corporal tornou-se impossível de decifrar, e a recompensa é taxada até ao tutano e repartida irmãmente pelo povo. A psicologia não elimina a loucura e os políticos não oferecem grande conforto aos seus cidadãos (ouço alguém dizer que precisamos de líderes e não de políticos!). Acreditamos que todos são Ocidente, e que todos ambicionam o mesmo, mas não percebemos o quão individual pode ser a natureza e consciência humana.

A perceção é perdida porque deixámos escapar os sinais de perigo, a empatia é mito urbano e a apatia é pecado mortal. A mentira é a nova verdade e jogar Bowling sozinho[2] deixou de parecer trágico. Estamos mais polarizados que nunca porque não nos ouvimos, mas principalmente porque não nos importamos. A benevolência perde-se por entre almas desumanas que nos esvaziam as sociedades, enquanto fingimos assumir responsabilidade por erros passados. O que é que aprendemos? Que os “perdedores” das grandes guerras não precisam de abrigo? Que a humilhação internacional é um bom Professor? Que expandir as nossas fronteiras até nos sentirmos suficientemente “grandes” é uma boa estratégia? Alguns dirão que não aprendemos nada, mas eu sou otimista. O tempo passa e continuamos a apontar o dedo aos nossos vizinhos, e sobretudo aos nossos inimigos. Tornámo-nos arrogantes e exageradamente confiantes no conhecimento que pensamos possuir e no tempo ilimitado que acreditamos comprar, enquanto perdemos os alarmes vermelhos. Hoje enfrentamos a guerra porque fomos ingénuos ao ponto de adormecer na selva. Perdemo-nos por detalhes: assuntos do quotidiano, lobbies, pressão dos média, agendas políticas, e corrupção. Deixamos a NATO reformar-se. A nova Pérsia armou-se até aos dentes e nós nem nos apercebemos. Pior! Negamo-lo porque era mais “conveniente”. Todos falam de guerra como se já que não se construíssem armas e poder nuclear. Acabar a guerra seria desmantelar o mundo, mas os americanos e os russos (e acima de tudo, o medo) suportam a guerra pelo mundo, sob pretextos de que “dinheiro é poder”, e de que “mortos contamos todos os dias”. Pondo a hipocrisia de parte, vendem-se armas a nações sem esperança enquanto se finge apoiá-las. Mediocridade do século XXI no seu auge. “Achamo-nos socialmente evoluídos”, dizem.

A mitologia grega diz-nos que o ser humano nasceu com duas faces, e que, por Deus temer o seu poder, Ele mesmo os separou em dois, condenando-nos, individualmente, a viver sozinhos, à procura da nossa metade. Às vezes pergunto-me: ainda estamos à procura? O que é que antecede o poder? Existe algo anterior ao egoísmo? Talvez Nietzsche tivesse razão, e talvez Deus nos tenha abandonado há muito tempo por não termos cura. Nós matámo-Lo porque não suportamos a Sua perfeição. Continuamos a lutar pelas causas erradas e continuamos a morrer sem propósito. Tucídides teria vergonha do Homem atual porque, ao contrário dos espartanos da sua época, nós não temos honra nem glória. Tenho vergonha do que está a passar-se no mundo, e não sou suficientemente ingénua para acreditar que nada fizemos de errado. Este é um momento de reflexão para assumir responsabilidades e lutar pela Paz, por ser ela a única gota de justiça (e talvez sanidade) no caos que construímos.

Putin aproximou-se do Ocidente e aguardou a possível saída de Trump da NATO, de forma a garantir a miséria europeia em caso de ataque. Felizmente que esse momento nunca chegou, pois nesse caso a Ucrânia seria apenas um portão aberto para uma Europa desarmada, sem Reino Unido nem Merkel, sem pés nem cabeça. O limbo que separa um e outro ciclo pode ser motivo de inovação positiva ou janela para a anarquia total. Mas enquanto ciclos se definem, Putin, sentado na maior poltrona do Kremlin, goza a nossa incapacidade estratégica e fraca organização de prioridades, enquanto aguarda a supremacia do seu império que iniciaria com uma nova dinastia czarista. Algumas pedras no caminho, porque a NATO ganha um novo propósito, solidificando-se, e porque os Estados Unidos da Europa se unem inesperadamente, muito embora permaneça o Presidente russo esperançoso de que a sua vingança se servirá fria. Resta-nos esperar que “os russos também amem os seus filhos!”[3]

Quem me dera que pudéssemos reviver a História sem vitoriosos e vencidos, porque a coroa será sempre pesada para aqueles que a carregam, e a humilhação irá eternamente perseguir os espíritos vulgares. Rezo para que o amor supere a violência, e talvez um dia encontremos o caminho de volta para o Jardim de Éden, onde choraremos até adormecer, ao lembrarmos o que fizemos uns aos outros.

[1] Analogia ao Fim da História e o Último Homem de Francis Fukuyama.
[2] Analogia a Bowling Alone de Robert D. Putnam.
[3] Adaptação e tradução da música Russians de Sting.