Reza a História que há mais de dois mil anos um Deus se fez Homem e desceu à Terra para que a sua divindade se expressasse num rosto humano. Desde então a vida de um Cristo feito Homem é o eixo fundamental de uma religião que passou a ter no sofrimento e no consolo a sua principal razão de existir. E se Deus desde aí tem uma fisionomia esguia e elegante, marcada por uma coroa de espinhos, na sua humanidade os cristãos passaram a ter nos outros e no amor que lhe dedicam a porta para a salvação.

Dois mil anos depois a força da mensagem de um Cristo homem permanece válida e necessária para aliviar as pessoas de uma condenação permanente ao sofrimento. A natureza humana é feita de imperfeição, e a sua existência, por mais que se evolua, tem permanecido sempre frágil. O mundo não tem parado de mudar, mas o progresso e o fluir do tempo têm sido incapazes de resolver um dilema essencial: o coração das pessoas continua a ter uma enorme necessidade de conforto e de alívio. A nossa existência é desde há séculos uma luta contínua contra o sofrimento, e tudo o que temos vindo a fazer mais não é do que procurar enganar o destino, aperfeiçoando-nos, tentando tornar o nosso quotidiano um pouco mais agradável. E se o planeta é a cada dia que passa um local mais confortável para se viver, a insatisfação humana, a dor, o sofrimento, a amargura, os medos, paradoxalmente, continuam por aí de pedra e cal, porque nem mesmo os que tentaram, conseguiram reduzir a nossa essência a uma dimensão meramente material: precisamos de esperança, do amor e do calor dos outros e, na sua humanidade, acreditam os cristãos, do amor de um Deus que quis estar próximo de cada um de nós.

A mensagem cristã, ao longo dos séculos, foi receita de sucesso pois serviu a muitos para encontrarem um sentido forte para a existência humana. A forma como os cristãos racionalizam e dão sentido à dor e ao sofrimento, conseguindo encontrar alegria na fragilidade, fez dos bons cristãos pessoas excecionais que serviram de exemplo para os que, tolhidos pelo medo e pela sua própria mediocridade, vacilam nas suas tristes sobrevivências.

As igrejas cristãs e, em especial, a Igreja Católica tornaram-se, na medida da força da mensagem de Cristo, referências de moralidade, de cultura, de evolução, de superioridade humana, mas também de Poder, absorvendo e trazendo para dentro de si todas as imperfeições da existência humana. A Igreja Católica tem sido ao longo dos séculos uma organização paradoxal, que encerra ao mesmo tempo a grandeza de uma mensagem que explica melhor do que ninguém o sentido da existência humana, enquanto apodrece lentamente por se deixar dominar a espaços por tudo aquilo que aspira combater.

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Nas últimas semanas, os católicos portugueses têm sofrido com a triste descoberta que muitos dos seus principais responsáveis estão envolvidos numa teia de ocultação de uma série de abusos, vários deles ganhando agora contornos de escândalo, anos passados, como se estivéssemos na presença de uma bomba que explode ao retardador.

É difícil quantificar a extensão total dos abusos sexuais que terão ocorrido dentro e a partir da Igreja Católica portuguesa, mas só quem tiver perdido o discernimento ou preferir viver na cegueira poderá negar que este terá sido, durante muito tempo, um problema generalizado, altamente enraizado no quotidiano da instituição. E se os factos revelados são seguramente a ponta de um iceberg, a resposta da hierarquia da Igreja, na sua inconsistência e falta de empatia, demonstra, sobretudo, um enorme desconforto e uma clara má consciência de quem conhece a dimensão real de um problema nos seus detalhes, estando capturada por anos a fio de silêncios cúmplices e ocultações.

A Igreja Católica é, porém, muito mais do que as suas estruturas hierárquicas que, de tão envelhecidas, estão a breve trecho irremediavelmente condenadas a sair de cena. Com elas morrerão os seus demónios. Não serei eu, seguramente e também por isso – muito menos nas limitações de uma crónica –, a julgar e sentenciar o que compete à justiça divina, e dos homens, avaliar.

Mas não vou deixar de vos desabafar que sempre que leio ou ouço alguém com responsabilidade a minimizar a dimensão do problema ou a apontar para “inimigos externos”, empolamentos, ou supostas fabricações de escândalos, como se de um ataque à Igreja se tratasse, me lembro do assustador Hannibal Lecter, personagem pérfida protagonizada por Anthony Hopkins no filme O silêncio dos inocentes. O filme, impróprio para pessoas mais impressionáveis, trata uma mensagem fundamental, tantas vezes esquecida. Hannibal, psiquiatra preso por canibalismo, numa das várias conversas que mantém com Clarice, agente do FBI, confessa que nas celas vive cercado pelos lamentos dos homens que, como ele, estão presos e a pagar as suas condenações. Mas que, para ele, o silêncio das pessoas inocentes é o que mais o atormenta.

Não faltam por aí gritos de escândalo de quem sente que a “sua” Igreja está a ser atacada, bem como verbalizações barulhentas daqueles que ignoraram, relativizaram ou omitiram acusações. Todos os que tiveram responsabilidades na Igreja nas últimas décadas, mesmo que se sintam impunes, em liberdade, ou até defendidos pela conveniente ignorância de não terem procurado perceber o que se passava, estou certo estão igualmente em sofrimento, presos nas suas consciências e a viver as suas próprias condenações. Para lá do ruído, porém, não esqueçamos que as verdadeiras vítimas, na sua maioria, permanecem e permanecerão em silêncio. As hierarquias da Igreja, cúmplices e envelhecidas, devem pelo menos honrar aqueles que falam em silêncio para evitar o escândalo e tentaram seguir as suas tristes existências, suportando o fardo de estar vivo. Ouvindo o seu apelo silencioso. Afastando-se. Dando espaço para um novo começo, com outros protagonistas. A sociedade portuguesa precisa, como sempre precisou, de quem prossiga com juventude, entusiasmo e sem telhados de vidro a missão de espalhar o sentido de humanidade que ganha um toque especial quando se inspira na mensagem simples de um Deus que se fez homem, e sofreu até à morte para nos salvar.