O progresso mede-se assim: há cem anos, para derrubar um governo, ia-se a um quartel; agora, vai-se ao tribunal. O golpismo mediático-judicial é a versão democrática do golpismo militar da primeira república. O caso da Tecnoforma lembrou-nos, a semana passada, como estas coisas se fazem. Depois do procedimento judicial, que pode consistir apenas no arquivamento de uma carta anónima, há a fuga de informação, calibrada para que a oposição e a imprensa possam gritar por “esclarecimentos” que, venham quando vierem, já se sabe que serão sempre “tardios” e “incompletos”. Ao visado, de nada serve “mostrar tudo”. Resta-lhe subir a parada, como Passos Coelho terá feito na sexta-feira, e colocar o caso no plano da conspiração. A partir daqui, cada um acredita no que quiser.
Há muito tempo que em Portugal, como noutras democracias, o debate de políticas públicas ou de princípios doutrinários conta menos na disputa política do que a esgrima dos escândalos. As primárias do PS confirmaram a tendência, quando Seguro tentou pregar Costa à cruz do “partido invisível”. Para qualquer concorrente, a esperança nunca é convencer os eleitores com um argumento, mas comprometer o rival num escândalo ou submetê-lo a uma súbita luz melindrosa.
Primeiro, porque a oligarquia política não acredita em profundidades. Está convencida de que a “imagem” é tudo, e que as ideias ou os factos não comovem ninguém. É preciso ter um programa, porque é costume, mas quem é que tem tempo para ler um programa? Mais: quem é que ainda acredita num programa? Tudo parece epidérmico aos nossos oligarcas, e portanto pouco mais lhes interessa do que sujar ou chamuscar o “boneco” do adversário, dê por onde der. Não importa se Passos cometeu ou não “ilegalidades”. O que importa é acorrentar-lhe o nome à “Tecnoforma”, mesmo que isso nada signifique em termos judiciais.
Segundo, e talvez mais importante, a oligarquia sente que a divisão política passa cada vez menos entre os partidos, e cada vez mais entre todos os partidos de um lado e os cidadãos do outro. A abstenção das primárias do PS (25%) é um sinal: nem os militantes, que pagam quotas, ou os simpatizantes, que foram de propósito inscrever-se, se dispuseram a votar a 100 %. Como, então, mobilizar o eleitorado em geral, onde militantes e simpatizantes são um resquício minoritário? O ponto de partida é este: ninguém acredita em virtudes, mas toda a gente acredita em vícios. Por isso, o melhor truque é a demonização do adversário, confiando no medo ou no repúdio para inspirar cidadãos imunes à confiança ou ao entusiasmo. Passos Coelho, a esse respeito, já passou por tudo: neoliberal, germanófilo, faltava a suspeita de que, afinal, não é uma “pessoa remediada”.
A contenção, hoje, só serve para alimentar o sarcasmo. Seguro, sempre explosivo, foi mesmo assim acusado de moderação excessiva. Não basta falar, é preciso berrar. Não basta discordar, é preciso acusar. Ninguém percebe que o comedimento pode não significar falta de paixão ou de urgência, mas apenas a noção de que não faz sentido deitar fogo à casa só para nos livrarmos da mobília da sala.
Não se pode esperar nada de bom deste sistema de facciosismo saloio. Em França, as brigas despudoradas e os escarcéus sem limites da oligarquia local, por entre prisões e escândalos de imprensa, não trouxeram nem mais limpeza, nem mais transparência, mas têm ajudado à ascensão de Marine Le Pen, agora com dois lugares no senado. A arte de derrubar um adversário sem ao mesmo tempo derrubar o regime é uma arte subtil, e esquece-se muito facilmente.