Se o Ocidente ainda não está morto, há de morrer a rir. No caótico cenário que a pandemia trouxe e que caracterizaria, de qualquer modo, o atual momento de transição global, os equilíbrios de poder abanam, as instituições sofrem, as lideranças escasseiam e os povos duvidam. Apesar de tudo isso, com ou sem vírus, a gradual falência da ordem internacional e os movimentos de mudança naquilo que antes a suportava vêm sendo agradavelmente compensados com uma boa dose de humor igualmente globalizado.
Esta semana, um homem disfarçado de panda foi detido pelas autoridades bielorrussas, que tomaram a indumentária como forma de protesto contra o regime de Lukashenko. A ex-secretária da imprensa de Donald Trump, Sarah Huckabee Sanders, descreve nas suas memórias em breve editadas que o Presidente celebrou o facto de Kim Jung Un se “ter feito a ela”. O presidente de uma junta de freguesia no sul de Praga enviou um e-mail ao ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, exigindo um pedido de desculpas formal devido às ameaças que Pequim lançou ao presidente do senado da República Checa; investido de uma patriótica bonomia, o autarca tornou a missiva imediatamente pública, na qual se refere aos governantes chineses como “uns palhaços sem maneiras” – algo ultimamente próximo da verdade. A China, não desprovida ela própria de alguma capacidade de auto-ironia, veio por sua vez condenar a Índia e os Estados Unidos por banirem apps eletrónicas de origem chinesa – sendo que Facebook, Twitter, Whatsapp, Google, Spotify, Wikipedia, Yahoo, Youtube, Snapchat, Instagram e Pinterest são todos de acesso proibido no território chinês. Como cereja no topo do bolo, Vladislav Surkov, um ex conselheiro e ideólogo do Kremlin de Putin, publicou um poema cujos versos não resisto a citar:
“Estou sozinho outra vez
Deram-me liberdade
Quem precisa de cocaína
Quando há este ar?”
A semana internacional teve, todavia, um lado trágico que a comédia não conseguiu anestesiar. O dr. Costa, habitualmente tão zeloso das modas mediáticas em vigor, confirmou a sua recém-formada amizade com Viktor Orbán e recusou tomar a Hungria como uma potencial autocracia no seio da União Europeia, em entrevista à revista do Expresso. O governo alemão, sempre vocalmente “preocupado” com as questões humanitárias em Xinjiang, deixou claro que os laços comerciais entre Berlim e Pequim não serão afetados por matérias de direitos humanos. Angela Merkel proferiu um severo discurso sobre a tentativa de assassinato de Alexei Navalny, líder da oposição russa envenenado com o mesmo químico que vitimou Sergei Skripal em 2018, mas remeteu a eventual resposta ao crime para o governo russo – o que, no capítulo das auto-ironias, também merece prémio. Quanto a consequências concretas, nomeadamente no projeto de gasoduto Nord Stream 2, que ligará energeticamente a Rússia à Alemanha sobre o Báltico, nem uma palavra da chanceler.
Se a isto juntarmos o caminho errático, essencialmente em palestras e artigos de opinião, que o alto-representante para a política externa da UE, Josep Borrell, vem percorrendo quanto à China, rapidamente entendemos como as democracias jazem indefesas e insuficientemente escudadas na efemeridade de discursos e conferências.
Como arma de combate, o pragmatismo burocrático não chega. O debate sobre a crise democrática no mundo é recorrentemente feito com argumentos em torno da desigualdade que a globalização não resolveu (e até agravou), com remoques ideológicos contra o capitalismo e/ou contra os populistas – e estamos já todos acostumados a adivinhar o argumento que se segue –, mas talvez o coma da Liberdade se deva a um sintoma mais singelo e não menos mortal: a crise das democracias é, antes de mais, uma crise dos democratas. E, como escrevia António Nogueira Leite há dias, estes correm o sério risco de perder por falta de comparência. Se aí chegarmos, meu caro leitor, não haverá riso que nos valha.