Se o problema é público, então a solução passa por trazê-lo para a esfera do Estado. Esta parece ser a lógica subjacente à intenção da União Europeia em formar imãs e demais clérigos muçulmanos, criando um Islão oficial, moderado e aceitável.
Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, aventou há dias a criação de um instituto para a formação ou validação de autoridades religiosas islâmicas em território europeu, via para combater o extremismo violento e as mensagens de ódio. Pretende-se com isto levantar uma espécie de corta-fogo às doutrinas radicais que instigam o terrorismo de inspiração islâmica, comummente designado jihadismo. A ideia surge na sequência dos atentados recentes na Áustria e em França e, em particular, da postura de combate sem quartel ao islamismo assumida por Emmanuel Macron.
Sem prejuízo das boas intenções, a iniciativa padece de um grande mal: já foi tentada e os resultados não são animadores. Em vários países árabes, sobretudo no Norte de África, mas não só, existem formas de Islão sancionadas pelo Estado. A abertura de mesquitas e a nomeação de imãs requer visto prévio das autoridades oficiais, que assim procuram impor versões tuteladas da religião – a principal preocupação é que não sejam subversivas e, por conseguinte, que não ameacem a perpetuação dos autoritarismos árabes. O resultado desta política resume-se numa frase: agigantaram-se as fracturas dentro do Islão político, fortalecendo as correntes jihadistas.
A razão é simples. As várias doutrinas que cabem no espaço do jihadismo lutam em prol daquilo que dizem ser o Islão puro, imaculado e original. Qualquer interpretação religiosa vista como desviante torna-se censurável e os seus crentes alvos legítimos de violência. Por maioria de razão, aos olhos do extremismo violento ,o Islão regido pelo Estado constitui uma afronta herege, o desvirtuar dos ensinamentos de Alá para efeitos da manutenção de déspotas no poder.
Por tudo isto, o terrorismo de inspiração islâmica é, em primeiro lugar e sobretudo, uma pugna interna. Não por acaso, as principais vítimas do jihadismo são muçulmanos, homens e mulheres que, na mundivisão do terrorismo islamista, contemporizam com os regimes autoritários árabes e subscrevem práticas islâmicas tidas como desviantes. De resto, do ponto de vista histórico, o jihadismo começa por afirmar-se contra o Inimigo Próximo – os regimes árabes vistos como ímpios – e só depois contra o Inimigo Distante – o Ocidente, pelos valores que defende, mas também pelo apoio político e económico que presta aos autoritarismos árabes. Antes de qualquer outra coisa, a dita jihad é uma forma violenta, sectária e totalitária de autoproclamada purificação do Islão.
Quando vários regimes árabes decidiram estabelecer formas autorizadas de Islão, o jihadismo regozijou. Ficava provado que, de facto, havia crentes que se subordinavam à heterodoxia, que se submetiam a regimes ilegítimos que subvertem os ensinamentos religiosos, que preferiam a palavra do Estado à palavra de Alá. A criação de um Islão autorizado foi ao encontro das narrativas maniqueístas e refractárias do terrorismo. A propaganda jihadista aproveitou – e os esquemas de recrutamento também. Se a Europa optar pelo mesmo caminho, ao rol de acusações juntar-se-ão outras injúrias: “blasfémia”, “hedonistas” e “infiéis”.
Não há soluções fáceis, nem evidentes. Mas o modelo existente em Portugal é preferível. No nosso país existe uma relação funcional e transparente entre o Estado e a maior comunidade muçulmana. Não só no plano institucional, mas também por via de relações de confiança pessoal forjadas ao longo de décadas, sem necessidade de qualquer tutela político-administrativa. É verdade que o modelo português não é replicável noutras paragens, desde logo porque a comunidade muçulmana portuguesa tem especificidades que facilitam em muito as boas relações – a título de exemplo, para a maioria da comunidade muçulmana portuguesa não existe um conflito entre identidade religiosa e identidade nacional, dilema usado pelo jihadismo para radicalizar e recrutar na Europa. Ainda assim, domar os termos da fé extravasa as competências – e as capacidades – da União Europeia.
Por definição, todo o terrorismo é político. Consiste na materialização violenta de ideias que visam alterar a distribuição de poder. Pode invocar argumentos étnicos, nacionalistas, religiosos ou até ecológicos. Mas na base de tudo estão sempre objectivos políticos. Se queremos combater o terrorismo, devemos começar por enfraquecer as ideias que o sustentam. O instituto europeu para a formação de imãs fará o contrário. Se o Conselho Europeu pretende entrar em cena como deus ex machina para resolver a história do jihadismo, então que comece por compreender a tragédia que se propõe resolver.