No debate parlamentar que investiu o governo espanhol, em Janeiro do ano passado, um deputado da coligação Navarra Suma resumiu assim o estado da arte: Pedro Sánchez preparava-se para jurar lealdade à Constituição e ao Rei apoiado por partidos que querem destruir a Constituição e depor o Rei.

De facto, as forças políticas que respaldam o PSOE no Executivo têm como objectivo assumido a revisão profunda dos equilíbrios político-institucionais nos quais assenta a democracia do país vizinho, nomeadamente a substituição da monarquia vigente por uma república. O partido de extrema-esquerda Unidas Podemos, parceiro de governo dos socialistas, é o rosto mais visível desta proposta transformadora que ameaça estilhaçar algumas traves mestras da Constituição. Mas não está sozinho.

Os separatismos catalão e basco, defendidos respectivamente pela Esquerda Republicana da Catalunha e pelo Euskal Herria Bildu (E.H. Bildu), subscrevem com fervor estes objectivos por entenderem que abrem o espaço necessário à independência da Catalunha e do País Basco. Um e outro são hoje apoios parlamentares indispensáveis ao governo central, de tal forma que foram elevados à categoria de “direcção de Estado” pelo vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias, líder do Unidas Podemos.

Talvez a beleza da democracia resida num grau de liberdade tão magnânimo que confere poder até a quem pretende desmantelar o Estado. É um debate tão interessante como longo. Porém, o assunto premente não é apenas a manutenção da integridade territorial de Espanha, mas a defesa dos valores subjacentes ao Estado de Direito. Aqui há muito a dizer – tentativas de controlo do poder judicial, esforços para destituir a oposição de capacidade de escrutínio, sinalização pública de jornalistas incómodos –, mas os tempos recentes obrigam-nos a olhar para o independentismo basco, que se desdobra em afirmações e práticas atentatórias da convivência democrática.

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O E.H. Bildu nasceu como receptáculo das sobras da ETA (Euskadi ta Askatasuna – Pátria Basca e Liberdade), organização terrorista dissolvida em 2018. Importa recordar que a ETA foi responsável por pelo menos 845 mortes, lista na qual se encontram polícias, militares, políticos, jornalistas, empresários, professores, comerciantes, taxistas, operários, donas de casa (uma portuguesa), desempregados (um português), crianças e jovens. Juntam-se-lhes milhares de feridos, vários mutilados por explosões. Importa ainda lembrar que a imensa maioria dos homicídios – 95% – ocorreu após a morte de Francisco Franco.

O E.H. Bildu rejeita agora o uso de violência, mas abraça com orgulho o legado da organização terrorista. A forma como recebe os membros da ETA recém-libertados da prisão é disso exemplo. Em cerimónias públicas chamadas Ongi Etorri, ou Boas-Vindas, os presos são tratados como patriotas valentes, “presos políticos” condenados pelas suas ideias, esquecendo que muitos destes “mártires” foram condenados por múltiplos homicídios. Entre bandeiras nacionalistas e gritos sectários, branqueiam-se os crimes cometidos e glorifica-se o passado de violência, o que redunda num desprezo ostensivo pelas vítimas do terrorismo. Não há nada de clandestino nestas práticas: em 2019, contabilizaram-se 108 cerimónias públicas de enaltecimento do terrorismo; em 2020, apesar do confinamento exigido pela pandemia, contaram-se 120 só no primeiro semestre. O governo espanhol pouco diz e nada faz porque, afinal, o E.H. Bildu integra a “direcção de Estado”. Sánchez conferiu respeitabilidade a um grupo político comprometido com o rasto homicida da ETA, pensando apenas nos seus interesses imediatos. E sem ignorar que, ao proceder assim, fractura ainda mais a sociedade espanhola e corrói valores essenciais a qualquer democracia.

A par destes rituais estão diversas declarações que atropelam os mais elementares valores democráticos. Sucedem-se em catadupa, logo fiquemos pela mais recente: Maddalen Iriarte, porta-voz do E.H. Bildu no parlamento basco, garantiu há dias que “o dano causado pela ETA está reconhecido; que fosse justo ou injusto depende do relato”. Para o independentismo radical não há factos nem História, apenas “relatos” do passado. Logo, os assassinatos com motivos políticos podem justificar-se, mesmo numa democracia europeia. Tudo depende do “relato”. Como bem notou o historiador Joseba Louzao, se isto não é o suficiente para causar escândalo, então substitua-se ETA pelas palavras franquismo, violência doméstica ou racismo.

Controlar o passado é fundamental para condicionar o presente e o futuro. Por isso, quando em Novembro de 2020 o deputado do E.H. Bildu nas Cortes Jon Iñarritu se solidarizou com o pai de um polícia morto pela ETA foi rapidamente desautorizado pela liderança do seu partido. Reconhecer o sofrimento de uma vítima abre uma brecha no “relato” pró-etarra. Iñarritu não pediu perdão nem teceu considerações morais sobre atentados, apenas manifestou solidariedade e pesar. Um excesso inaceitável para os timoneiros do independentismo.

Estas afirmações e práticas exprimem convicções antidemocráticas, mas são sobretudo um instrumento antigo de polarização. Ao longo de décadas, a ETA e o movimento político que a sustentou procuraram levantar uma fronteira étnica dentro do País Basco, colocando de um lado os nacionalistas e do outro os não-nacionalistas. Na terminologia etarra, a sociedade dividia-se em “heróis” e “traidores”. A um só tempo, criavam uma frente nacional basca, forçando o nacionalismo moderado a colocar-se sob tutela da organização terrorista, e excluíam da vida política quem não bebesse do credo nacionalista.

Com maior ou menor habilidade, os sucessivos governos espanhóis contrabalançaram essa fronteira com outra, a que separa democratas de não-democratas, atraindo os moderados para o seu redil. O governo de Pedro Sánchez demitiu-se dessa função de equilíbrio. Não só não censura o E.H. Bildu, como o recompensa com cedências várias.

A estratégia do separatismo basco radical explica-se com uma frase escrita em 1982 pelo etarra José Manuel Pagoaga: “Necessita-se sangue e tempo para construir um povo”. A ETA provocou derramamentos de sangue durante décadas e, agora, compete ao E.H. Bildu gerir o tempo, construindo um povo independente sobre alicerces de ódio nacionalista, revisionismo histórico e normalização póstuma da violência. Que o E.H. Bildu o faça, é normal. Que o governo o aceite, não.