Os ataques terroristas do Hamas a Israel destaparam um axioma que parece inovador no espaço público português: a diferença absoluta entre anti-sionismo e antissemitismo. Os intelectuais públicos e os movimentos solidários com a Palestina esforçam-se por sacudir qualquer acusação de racismo contra os judeus, situando as suas críticas no espaço da justa denúncia do movimento sionista. Argumentam, no fundo, que não os move o ódio, mas a simples e merecida censura ao Estado de Israel e às suas políticas.

Nascido há longas décadas, o anti-sionismo tem alguns pressupostos lógicos e admissíveis, sobretudo como expressão de agravos sentidos pelas populações árabes do Médio Oriente. Mais do que um ataque de cariz étnico, tratar-se-á de discutir os alicerces políticos de Israel no passado e no presente. Note-se, porém, a subtileza implícita: sendo o sionismo o movimento que sempre defendeu a criação do Estado de Israel, o anti-sionismo, desde logo nas suas versões mais obtusas, redunda na negação do direito de existência desse Estado.

Defendem-se os anti-sionistas: tal conclusão é exagerada – e mal-intencionada –, pois apenas questionam a forma como o Estado nasceu e as políticas que implementa desde então, subentendendo-se que não se oporão à criação desse Estado noutra parte do mundo. Mas nunca explicam onde. Certo é que as manifestações anti-sionistas das últimas semanas na Europa se agitaram ao som do refrão “do rio (Jordão) ao mar (mediterrâneo), a Palestina será livre”, do qual decorre a eliminação de Israel do mapa.

A isto acrescem vários ângulos mortos. Por exemplo, ignorar que as críticas mais duras e melhor fundamentadas às políticas de Israel partem de cidadãos israelitas, na sua maioria judeus. Não são anti-sionistas. Apenas exercem os direitos, liberdades e garantias normais em qualquer democracia plural, regime garantido em Israel, mas negado em Gaza. Outro ângulo morto está no facto de o sionismo viver hoje melhor com a solução de dois Estados do que os seus detratores.

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É também curioso notar a ferocidade do anti-sionismo nas críticas aos colunatos edificados desde 1968, embora tenda a ser contemplativo quanto à invasão da Ucrânia pela Federação Russa. Esquece igualmente a brutal segregação da minoria Uigure na China. Suprema incongruência, condena as origens reacionárias, xenófobas e burguesas do nacionalismo judaico ao mesmo tempo que, em Espanha, apoia as pretensões separatistas dos nacionalismos basco e catalão.

Estes e outros desequilíbrios deixam entrever uma atenção dedicada, quase exclusiva, a Israel, o que torna menos críveis os esforços para enjeitar as acusações de ódio étnico. Até porque, sem sair do Médio Oriente, o anti-sionismo coloca com frequência Israel e o Hamas no mesmo patamar moral, omitindo o carácter democrático, pluriétnico e plurirreligioso do Estado de Israel, sendo ainda mais omisso a respeito da essência teocrática e terrorista do Hamas.

Ademais, a dicotomia anti-sionismo vs antissemitismo coxeia no plano narrativo. Boa parte do anti-sionismo hodierno sustenta-se em velhos tropos e estereótipos antissemitas, como sejam o ‘lobby judeu’, que aponta para uma conspiração obscura global destinada a manipular as opiniões públicas a favor de Israel, ou referências mais ou menos diretas a uma alegada propensão judaica para acumular capital e, dessa forma, perpetuar e agravar injustiças sociais. Basta entender que o antissemitismo histórico nega a igualdade de direitos dos judeus como cidadãos dentro de uma sociedade e o novo anti-sionismo nega os direitos do povo judeu à sua soberania legal no seio da sociedade das nações para vislumbrar a ténue linha que separa um do outro. Autodeterminação para todos os povos, excepto o judeu.

Na verdade, o desdém das esquerdas pelo sionismo confunde-se com a história deste último, fundado em 1897 por Theodor Herzl. Já antes da Primeira Guerra Mundial eram claros os ataques de vozes comunistas e socialistas. O sionismo, tal como o capitalismo que este alimentava, estaria votado à extinção. Constituía um perigoso e egoísta desvio da luta de classes. E com especial perfídia, pois funcionaria como uma quinta-coluna enraizada no tecido social e económico.

Aqui chegados, o anti-sionismo fará questão de lembrar que o primeiro Estado a reconhecer Israel foi a União Soviética de Estaline. Como é próprio dos radicalismos que se socorrem do passado para fundamentar obsessões presentes, a História aparece truncada. Movido pela dinâmica bipolar da Guerra Fria, Moscovo acreditava que o reconhecimento de Israel diminuiria o poder e a reputação do Reino Unido no Médio Oriente e encaminharia o país recém-criado para a esfera de influência soviética. Outro pedaço de passado em falta são os processos movidos pela cúpula soviética a vários judeus pelo simples facto de o serem.

Mais tarde, conhecidos os horrores do Holocausto, a criação do Estado de Israel é comparada aos métodos de colonização europeus, sendo, portanto, uma espécie de fruto da propensão da velha Europa para o imperialismo. Por outras palavras, procurou-se um pecado original para deslegitimar a criatura e os seus criadores, do qual se procura concluir que Israel será a última colónia do Ocidente. Os factos históricos posteriores, nos quais se incluem muitos erros e desmandos de Israel, receberam esmerada curadoria para sustentar conclusões há muito tiradas. O que desata a cornucópia das ironias: o sionismo, fundado em parte como reação ao antissemitismo europeu e como via para a emancipação de um território sob administração britânica, é, agora, acusado de racismo e de colonialismo.

A criação de mitos e retórica para demonizar Israel e os judeus teve vários pontos altos nas últimas décadas. A Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi um deles. A conferência da Organização das Nações Unidas sobre racismo e discriminação racial, realizada em Durban em 2001, foi outro. Em grande medida, foi a partir desta conferência que o conceito ‘apartheid’ se transplantou da África do Sul para Israel, tornando-se hoje hegemónico nos movimentos radicais a favor da Palestina. Foi também no encontro de Durban – descrito acertadamente como “sínodo progressista” pelo filosofo Jon Juaristi – que as acusações de ‘limpeza étnica’ e ‘genocídio’ do povo palestiniano às mãos de Israel entraram no discurso quotidiano, ecoando evidentes paralelismos com o regime nazi. Não por acaso, surgiram mais recentemente memes onde Adolf Hitler aparece de kipá e com outros adornos próprios da fé judaica: avança-se, assim, na equiparação de Israel à Alemanha nazi, o mal absoluto por antonomásia, donde vilipendiar o país e quem nele reside assume contornos de obrigação moral. A polarização que marca as sociedades ocidentais faz com que tudo isto passe incólume.

Antissemitismo e anti-sionismo são, de facto, doutrinas distintas. Mas importa reconhecer que sempre houve significativa sobreposição entre ambos, muito acentuada depois da Segunda Guerra Mundial, quando, por razões óbvias, o antissemitismo perdeu margem de manobra.

Como qualquer Estado, Israel pode e deve ser criticado. Como sempre foi. O seu inequívoco direito de defesa não isenta Tel Aviv do respeito pelo Direito Humanitário Internacional. Contudo, a salubridade do espaço público exige cuidado com artifícios: sejamos conscientes que muito do anti-sionismo mais não é do que a folha de figueira que esconde as vergonhas do antissemitismo.