Primeiro foi a secretária de Estado da Administração Interna Patrícia Gaspar a informar-nos que, segundo o algoritmo, o país está a arder pouco neste ano. Mais precisamente, segundo o tal algoritmo, o país deveria ter ardido mais 30 por cento: “Se considerarmos a severidade meteorológica, os algoritmos e dados dizem que a área ardida que deveríamos ter deveria ser 30% superior. Significa que apesar da complexidade, o dispositivo tem estado a responder bem” – afirmou Patrícia Gaspar com aquela convicção autista que a caracteriza.
Depois, ou ao mesmo tempo, que nestas coisas a impressão gerada pelas palavras é tal que se perde a noção do tempo, a ministra da presidência Mariana Vieira da Silva veio anunciar, com a serra da Estrela ainda a fumegar, que o “Parque Natural da Serra da Estrela vai ficar melhor do que estava” antes do incêndio.
As declarações das duas governantes colocam os habitantes das áreas ardidas em situações de enorme dilema sobre a qual das titulares de cargos políticos se devem dirigir: devem eles agradecer a Mariana Vieira da Silva por terem sido abrangidos pelo fogo e como tal irem ficar melhor do que estavam ou pedir a Patrícia Gaspar que os isente de cumprir o algoritmo? Convenhamos que a escolha não é fácil. Ou não era, porque entretanto chegou o terceiro elemento desta tríade das isentas de culpa e do mais elementar bom senso. Obviamente falo de Marta Temido, a ministra que mais fez pela destruição do SNS desde a sua fundação. Interrogada sobre a falta de médicos no SNS, Marta Temido culpou nada mais nada menos que as decisões tomadas “há várias décadas, nos anos 80” por esta situação.
Valham-nos os cabelos frisados, os chumaços nos ombros e as misturas de cores desses inesquecíveis tempos! Uma ministra que desde 2018 tutela a pasta da Saúde vem agora desculpar-se com os anos 80! E já agora porque se fica pelos anos 80 do século passado? Não lhe parece que a destruição em Lisboa do magnífico Hospital Real de Todos os Santos, aquando do terramoto de 1755, é uma explicação mais transversal e profunda?
Mas enfim respeitemos, pelo menos eu respeito, esta opção de Marta Temido pelos anos 80 do século passado. Porque talvez Marta Temido tenha posto o dedo na ferida quando recordou os anos 80. Não porque aí esteja a explicação para o actual estado do SNS – sim, é sabido que a redução das vagas em medicina entre 1981 e 1986 ia fazer diminuir o número de médicos mas não só se sabia isso há muito tempo, como Marta Temido é ministra há quatro anos, logo não lhe faltou tempo para pensar no problema. Mais importante ainda, o nosso actual número de médicos está dentro das médias europeias, acontece simplesmente que estes não querem trabalhar no manicómio em que Marta Temido transformou a gestão do SNS.
Então porque escrevi linhas atrás que talvez Marta Temido tenha posto no dedo na ferida quando recordou os anos 80? Porque na sua ânsia de se desresponsabilizar a ministra veio lembrar-nos que a nossa vida nem sempre correu neste plano inclinado para a decadência. Sim, nos anos 80 a vida era muito difícil, frequentemente muito mais difícil que hoje, mas, e este é um mas que faz toda a diferença, acreditava-se que ia ser melhor.
Quando os anos 80 começaram Portugal tinha um militar na presidência da República e um Conselho da Revolução em vez de um Tribunal Constitucional. A inflação era de 16,6% ao ano. Tivemos um terrível tremor de terra nos Açores, um primeiro-ministro que morreu na queda de um avião, o terrorismo das FP-25 e um desastre de comboio em Alcafache em que morreram mais de 120 pessoas.
Sim, também tivemos uma epidemia, a SIDA. Só que nesses anos 80 nos disseram que não devíamos ter medo e que o correcto era fazermos a nossa vida e não nos isolarmos ou isolarmos os outros. Sim, eu sei que a SIDA e a COVID-19 não se propagam da mesma forma, mas também me lembro que no início não se sabia quase nada sobre a SIDA, que o risco de apanhar SIDA era real e que, a ter-se optado pelos parâmetros histéricos da actualidade com a COVID, as pessoas com SIDA teriam sido banidas. E também não esqueci o discurso adulto dos responsáveis desta área, como foi o caso de Laura Ayres.
Sim, a vida não era nada fácil nos anos 80. Só que nós acreditávamos que ela ia melhorar. E acreditámos tanto que, quando a morte de Joaquim Agostinho, na sequência de uma queda durante a Volta ao Algarve, expôs as carências dos hospitais daquela zona, todos achámos que o futuro, pelo menos na área da saúde, seria um somatório de sucessivas e inquestionáveis melhorias. (Escusado será dizer que Marta Temido veio mostrar-nos que estávamos redondamente enganados.)
A reforçar esta nossa convicção estava o crescimento do PIB que, depois de ter atingido valores negativos em 1984, passou em 1987 para 7,63; em 1988 para 5,34 e em 1989 para 6,65. Dir-se-á que os fundos europeus ajudaram a esta mudança, coisa que me parece indiscutível mas, acrescento eu, deu também um forte e decisivo contributo para estes números, o facto de, desde o final de 1985, termos como primeiro-ministro alguém, Cavaco Silva, que enfrentava os problemas em vez de se pôr a cantar o hino da CGTP ou, o que vai dar ao mesmo, a culpar o passado, como faz a senhora ministra. Ou simplesmente esperar que eles se resolvam por si, como sucede com António Costa.
Aconteceram-nos tantas e tão diversas coisas nos anos 80 que é difícil enumerá-las: até tivemos rock português e duas revisões constitucionais sem as quais nunca nos teríamos modernizado. Mas o que garantidamente nunca julgámos então possível era que em 2022 a nossa vida fosse isto.