De todos os debates para as legislativas que vi, só num, que tenha reparado, foram verdadeiramente discutidos projectos de sociedade: o debate entre Rui Rio e João Cotrim Figueiredo. Mais exactamente, sem obviamente navegar num plano teórico elevado, que seria despropositado no contexto, a discussão mostrou as diferenças e as afinidades entre a concepção liberal e a concepção social-democrata da sociedade, duas possibilidades no interior da direita, se usarmos, como devemos, “direita” numa acepção ampla, abarcando um pouco do centro-esquerda. Não são apenas concepções políticas entre outras: representam provavelmente as duas mais significativas tradições do pensamento político das democracias ocidentais contemporâneas.

Social-democracia e liberalismo correspondem a duas atitudes diversas face ao problema da justiça social, e é natural que entrem em conflito. Mas, sendo a sociedade o que é – uma coisa largamente indeterminada e indeterminável que não pode ser objecto de uma teoria única -, as duas atitudes estão destinadas a comporem-se uma com a outra em graus diversos, consoante os momentos e as necessidades da sociedade. O mesmo indivíduo pode, de resto, oscilar ao longo da vida entre as duas posições, sem esquizofrenia alguma. Diria até que é bom que o faça.

Em contrapartida, o socialismo, quaisquer que sejam os seus laços históricos com a social-democracia tal como hoje a entendemos, é insusceptível de composição real com o liberalismo. Não se trata de um simples conflito, mas de uma oposição radical. O liberalismo e a social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se como pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro universo. Vejam o horror com que um socialista típico se refere ao liberalismo – e não é preciso ir a Pedro Nuno Santos. Do comunismo não vale a pena falar.

Isso explica em parte como os debates com a esquerda e entre a esquerda, sendo obviamente debates políticos, no sentido em que lidam com o modo como a sociedade se deve organizar, contêm sempre em si uma estranha irrealidade. Há sempre, mesmo no discurso do PS, um sentido que escapa ao sentido comum que é partilhado por social-democratas e liberais, por mais conflitos que entre eles existam. E esse sentido exprime-se, na sua dimensão mais aparente, sob a forma da afirmação de uma superioridade moral.

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Não quer dizer isto que entre esquerda e direita, numa acepção ampla, o debate seja impossível. Claro que é possível em muitos pontos importantes e em questões que relevam da pura luta pelo poder, que, se exercida livremente, é a condição política da democracia. Mas há uma assimetria de base que não é nunca eliminável, mesmo quando a esquerda adopta vestes pragmáticas. A direita pode procurar reformar a sociedade das democracias liberais, mas não põe em questão a legitimidade destas. A esquerda não pode existir sem a íntima suposição da sua intrínseca ilegitimidade (o que, é claro, é tudo menos incompatível com a tentação de obter o máximo de poder sobre essa sociedade). Foi assim no princípio e assim continua a ser. O que é explícito no PC e no BE é implícito em muito do PS.

Como disse, o mais aparente sinal disso é o preconceito da superioridade moral. E esse preconceito manifesta-se no que convém chamar o seu ufanismo. Vejam um qualquer debate com Catarina Martins, por exemplo. O seu discurso, mesmo que sob um modo calmo, contido e não agressivo que seria inimaginável em Louçã, e que vale muitos votos ao Bloco, não contém um momento que não transpire de moralização, de pretensão à educação das massas e de amor desmesurado à própria ideia de esquerda. Catarina ufana-se de ser de esquerda e mostra-o a todo o tempo.

Costa, por razões simultaneamente ideológicas e pessoais, é mais contido. Mas, quando passa ao ataque, não resiste ao mesmo ufanismo – ao regozijo ilimitado por pertencer à gloriosa família da esquerda, com toda a superioridade moral que a coisa comporta. Lembrem-se daquele vídeo em que, a propósito de uma aparente transigência de Rio com Ventura, logo nos esclareceu: “Quero ser muito claro: em circunstância alguma podemos ceder nos princípios ou nos valores. O combate ao populismo exige linhas vermelhas inultrapassáveis. Os valores do humanismo que inspiram a nossa sociedade não são transacionáveis. Um político responsável tem sempre os seus princípios e os nossos valores no centro”. Eis um perfeito ufanista de esquerda a dar-nos lições do alto da sua elevada estatura moral. Vamos ter mais disto, aposto, no debate de hoje à noite com Rio. Costa não resistirá a ufanar-se dos seus “princípios” e dos seus “valores” de proprietário da sociedade.

Em contrapartida, a direita, desde os primórdios da democracia, é tudo menos ufanista. Ventura é talvez uma excepção, mas Ventura copia a esquerda, como devia ser óbvio para todos, e, de resto, o seu ufanismo é um simples expediente. A direita, no seu conjunto, não se ufana de nada, o que é incontestavelmente um ponto a seu favor, quaisquer que sejam os seus defeitos. As lições de moral vêm-nos invariavelmente da esquerda, com aquele contentamento seráfico típico dos bem-aventurados, e são sistematicamente proferidas a partir de um ponto de vista que é o da superioridade de um mundo – o da esquerda – sobre o outro – o da, no fundo ilegítima, direita.

Mas tudo isto – ou, pelo menos, uma boa parte disto – é consequência da concepção que se tem da sociedade. Porque se a discussão é difícil com a esquerda é porque o seu projecto de sociedade é, muito genericamente, assente na ideia de uma ilegitimidade última da sociedade presente, que deve dar lugar a uma outra sociedade mais justa. O resto decorre daí. Enquanto que a conversa entre liberais e social-democratas é, quase por definição, feita de acomodações recíprocas.

Não se deduz de nada que se disse que a posição de esquerda seja ilegítima, o que seria replicar a atitude da esquerda face à direita. Há até um interesse particular à posição da esquerda, sobretudo da extrema-esquerda: o ela colocar, de um modo que a direita não coloca, ou pelo menos não coloca com idêntico vigor, a questão dos fundamentos da sociedade, a ideia da sociedade como uma criação humana, embora cada vez mais numa linguagem que torna essa mesma questão dificilmente compreensível, ocultando-a no próprio gesto que a enuncia. Quis apenas dizer que a viabilidade e a possibilidade de desenvolvimento da sociedade actual só pode ser assegurada pelo conflito das posições liberais e social-democratas (que extravasam de longe os partidos com esses nomes – o CDS, por exemplo, cabe perfeitamente aqui) e pelas negociações que o conflito permita.

Se as pessoas vão ter isso em conta no dia de votar é uma questão completamente diferente. Era bom que tivessem, mas isso é tudo menos seguro. A esquerda criou, com método e sábia premeditação, clientelas tão numerosas que o voto mais provável é um voto na estagnação, retoricamente disfarçada com a promessa de uma sociedade mais justa.