A perplexidade generalizada – da esquerda à direita — em torno da abstenção de Joacine Katar Moreira no voto “de condenação da nova agressão israelita a Gaza”, apresentado pelo PCP, tem muito que se lhe diga. Mas, contrariamente à onda de consternação que alimentou todo o tipo de opinião publicada e de comentários televisivos sobre o conflito entre a deputada e o seu partido, este episódio suscitou-me perplexidade por outros motivos: o pressuposto colectivamente assumido — desde reconhecidos comentadores, a jornalistas, a locutores de rádio, a deputados — da absoluta evidência do sentido de voto da deputada do Livre a favor da condenação a Israel. Comentários irónicos, troça, estupefacção, até um certo regozijo por ver JKM cometer um erro TÃO fatal, dominaram a comunicação social e as redes. Afinal, diziam muitos, a posição do Livre a favor da causa palestiniana é conhecida e o seu sentido de voto não deveria oferecer quaisquer tipos de dúvidas. Resumindo, basta dizer “Palestina” ou “Israel” que soam os alarmes ideológicos e prontamente os soldados ocupam as respectivas posições nas trincheiras do Parlamento. O que diz o voto em causa, pouco interessa. Contexto e espírito critico também pouco interessam.
Vamos por partes: uma coisa é a escalada de violência na faixa de Gaza – um território governado pelo movimento terrorista Hamas – outra é a ocupação militar Israelita nos territórios da Cisjordânia governada pela Autoridade Palestiniana. São dois territórios separados, não contíguos, que, desde a guerra entre o Hamas e a Fatah, são governados por duas administrações diferentes. O conflito Israelo-Palestiniano tem múltiplas frentes e nem tudo pode ser misturável no mesmo voto de condenação.
Percebo a intenção de denunciar e condenar a recente reversão da política norte-americana relativamente à legalidade dos colonatos anunciada pelo Secretário de Estado Norte-americano Mike Pompeu. Essa opinião e denúncia não se circunscrevem a uma posição da extrema-esquerda, nem do PCP. Independentemente da opinião de cada um sobre o conflito, esta é uma posição consensual na comunidade internacional e até em sectores da comunidade judaica. Mais recentemente a organização Judaica Jstreet declarou o seu apoio a uma carta de 101 congressistas democratas que condena a decisão da Administração Trump.
O que não é de todo consensual sobretudo para uma esquerda e centro moderados, onde creio se pode incluir o PS e até mesmo o Livre, é a total ausência de objectividade, contexto e neutralidade na linguagem empregue no voto de condenação em causa. Contrariamente ao consenso internacional desenvolvido em torno destas questões e a múltiplas declarações de chefes de Estado e representantes de organizações multilaterais, este voto não apela à Paz, nem à negociação entre as partes, é destituído de qualquer contexto sobre a escalada de violência em causa, ignora deliberadamente o papel que o Hamas e a Jihad Islâmica – organizações assumidamente terroristas – desempenham na faixa de Gaza e não condena o lançamento indiscriminado de rockets contra a população civil em Israel – a principal causa desta última agressão ao líder da Jihad Islâmica.
Desde que Israel se retirou de Gaza em 2005 ocorreram cerca de 4 rondas de confrontos militares entre as Forças de Defesa Israelitas e o movimento Hamas. Mais de 15000 rockets foram lançados indiscriminadamente contra Israel. Os sucessivos ciclos de violência trouxeram trágicas consequências para a população de Gaza, contribuindo para uma das mais graves crises humanitárias do mundo, é verdade, mas também para um clima de terror e ameaça constante para a população israelita ao longo da fronteira a sul e no resto do País. Poderia dissertar aqui sobre toda a sucessão de acontecimentos que desde 2006 nos conduziram à “agressão Israelita na Faixa de Gaza” mas isso agora pouco interessa. O que interessa é que a situação em Gaza é trágica e dramática e a responsabilidade recai sobre ambas as partes do conflito.
Posto isto, não me espanta que o PCP tenha proposto este voto de condenação, fazendo uma grande amálgama de assuntos na ânsia de impor ao Parlamento a sua mais relevante convicção ideológica em termos de política internacional: o ataque visceral ao Estado de Israel. Espanta-me, sim, o voto a favor da esmagadora maioria de deputados do PS, em contra-senso com as declarações do governo socialista, que manifestou prontamente “grande preocupação face à mais recente escalada de violência em Gaza” acrescentando ainda que “o lançamento indiscriminado de morteiros/rockets e quaisquer actos de violência contra alvos civis são absolutamente condenáveis e injustificáveis’’, bem como com as declarações da UE ou do ou do Enviado Especial das Nações Unidas para o Processo de Paz do Médio Oriente. Espanta-me também que a existir um voto desta natureza na AR, que o mesmo não tenha sido devidamente trabalhado e consensualizado pelas diferentes forças políticas de forma a reflectir uma linguagem equilibrada e mais fiel às diferentes sensibilidades e ao consenso internacional desenvolvido por instituições que acompanham esta questão há décadas. E espanta-me, ainda mais, que seja esta a grande causa de colisão entre o grupo de contacto do Livre e a deputada eleita, como se de um desvio ideológico insanável se tratasse.
Este episódio de mal-entendidos no partido Livre sobre Israel/Palestina é sintomático de uma certa confusão que existe em segmentos da Esquerda em relação a estes temas-bandeiras. Querem aderir a causas muitas vezes sem as compreenderem. Ainda durante a campanha eleitoral, a congressista Alexandria Ocasio-Cortez atrapalhou-se numa entrevista à estação PBS na qual criticava a ocupação da ‘Palestina’ mas depois não conseguia explicar porquê admitindo a sua ignorância no assunto.
Querem condenar, condenem, querem votar a favor, votem, querem troçar e manifestar perplexidade sobre a abstenção num voto deste tipo, por favor façam-no. Só se pede que saibam porque é que o estão a fazer.