No próximo dia 1 de outubro, Jens Stoltenberg, o estoico, entregará ao seu sucessor, numa cerimónia com a devida pompa e circunstância em pleno quartel-general da NATO, a batuta da Aliança mais bem sucedida da História Moderna. Nunca no início do seu mandato, que atravessaria uma década determinante na cronologia da segurança europeia, poderia o ex-primeiro-ministro norueguês prever a turbulência que se avizinhava. Hoje, estamos distantes da NATO em “morte cerebral” anunciada por Macron em 2019 e, se a organização transatlântica está mais viva do que nunca, deve-o a dois homens: Vladimir Putin e Jens Stoltenberg.
Economista de formação e herdeiro de uma herança política inveterada, o jovem Stoltenberg cresceu à mesa com espiões, diplomatas e chefes de Estado, sendo moldado pelas idiossincrasias dos caminhos da política internacional desde tenra idade. O pai, ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros da Noruega, aconselhou o filho, em 2014, a recusar a oferta para o posto de Secretário-Geral da NATO. Na experiência do Stoltenberg sénior, pouco se passava nos corredores soturnos da organização. Meses depois, um delírio czarista na Crimeia estilhaçava o conselho paterno.
A posição, central na liderança política e diplomática da NATO, foi estabelecida em 1952 e, desde então, tem sido ocupada por um civil europeu, geralmente um político com credenciais de peso, para contrabalançar com a hegemonia americana nas chefias militares da Aliança. Quem estreou o cargo foi o britânico Lorde Ismay, persuadido por Winston Churchill a aceitar o desafio numa Europa saída de uma sangria sem precedentes. Para Ismay, a NATO tinha sido concebida com o propósito de “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães em baixo”. No presente, duas dessas missões continuam a apoquentar os líderes europeus.
Três quartos de século de transformações profundas volvidas, entre o narcisismo e os tweets inflamados de Trump, a retirada calamitosa das forças da NATO do Afeganistão e a invasão russa catastrófica da Ucrânia, Jens Stoltenberg orquestrou sagazmente um capítulo excecional na história da Aliança. Se por um lado o avanço fácil dos talibãs sobre um Estado que nunca existiu desvendou os limites e deficiências graves das ações da NATO fora da sua área de responsabilidade, o retorno da guerra à Europa revelou a personalidade extraordinariamente tenaz do nórdico.
Motivado pelos ventos gélidos moscovitas, o Velho Continente compreendeu, tardiamente, que o preço da paz tinha subido substancialmente como não acontecia desde a era do temor da Guerra Fria. Mas, apesar dos soluços inevitáveis inerentes a uma organização composta por trinta e duas nações, o apoio à Ucrânia coordenado pela NATO tem sido significativo. Nesta incumbência delicada, Stoltenberg, demonstrando uma compreensão realista do novo paradigma da segurança internacional, quis sempre mais: mais armas, mais munições e mais apoio financeiro e político para a Ucrânia. O norueguês rapidamente entendeu que, se não podia mudar as ideias de Putin, mudaria os seus cálculos, abordando incansavelmente líderes recalcitrantes de países aliados ao longo dos últimos dois anos, e promovendo uma coesão notável entre os Estados-membros.
Já dentro de fronteiras da NATO, o reforço da defesa coletiva também foi visível. A postura de dissuasão aliada é hoje inquestionável e a fronteira oriental da Aliança está revigorada como nunca contra a imprudência russa. Mais de meio milhão de tropas espalhadas pelo continente e vários grupos de combate estão preparados para responder em uníssono a qualquer ameaça nascida das cogitações de Moscovo. Ainda assim, talvez o maior legado deixado pelo capítulo Stoltenberg no livro da segurança europeia seja a chegada de quatro novos membros às fileiras aliadas: Montenegro, em 2017; Macedónia do Norte, em 2020; Finlândia, em 2023 e a Suécia, este ano. A adesão das duas nações escandinavas, que deixam para trás uma tradição de neutralidade, surpreendeu o Kremlin e alargou consideravelmente a responsabilidade da NATO no Ártico, uma região que vaticina uma dança frágil num tabuleiro geopolítico global cada vez mais complexo.
Segue-se agora Mark “Teflon” Rutte, o negociador, reconhecido pela sua perícia em lidar com Donald Trump, e a sua crítica contundente ao devaneio da Terceira Roma de Vladimir Putin. Um acérrimo atlanticista, Rutte herda de Stoltenberg uma Aliança forte, mas cujo futuro próximo se adivinha complexo. Numa altura em que a NATO deve reinventar-se constantemente para se manter relevante num mundo que gira a um ritmo vertiginoso, a maestria criativa à mesa de negociações do holandês será decisiva. Para já, a sua prioridade é a custódia do auxílio à Ucrânia durante a mobilização das legiões do General Inverno nos meses custosos que se avizinham, tarefa especialmente complicada devido à incerteza em torno do futuro inquilino da Casa Branca a partir de novembro.