O ano de 2020 abalou o mundo como já não acontecia há muito. A pandemia contra a qual temos vindo a lutar tem sido demasiado para absorver numa sociedade totalmente globalizada que já se debatia com inúmeros problemas e crises delicadas. É inquietante a escalada de violência um pouco por todo o lado e parece que, cada vez mais, estamos a descarregar em cima uns dos outros de formas bastante perigosas.

Se olharmos para os primeiros dias da pandemia, apercebemo-nos de que aprendemos imenso e errámos em variadíssimos aspetos. Um dos aspetos em que fomos extremamente inaptos, e talvez até ingénuos, foi na avaliação da pandemia como uma luta entre “nós”, seres humanos, e o vírus. Parecia ser esse o fator unificador, mas acabou por ser tudo menos isso, como se viu pelas estatísticas. O número de óbitos e casos que afetaram, de uma forma totalmente desproporcionada, diferentes pessoas, como as minorias ou os mais desfavorecidos, mostraram que a pandemia não uniu, de todo, as pessoas.

Contudo, este caráter divisivo da pandemia não é uma experiência universal. Aliás, em algumas sociedades a pandemia aproximou as pessoas. É o caso da Austrália, um país agudamente polarizado antes da pandemia. Depois da luta contra os efeitos nefastos do vírus, os australianos confiam mais no governo, uns nos outros e acreditam agora na capacidade coletiva para enfrentar os desafios emergentes do século XXI, como as alterações climáticas, que já mostraram representar um colossal obstáculo para uma Humanidade que raramente se preocupou com os meios que utilizava para atingir os seus fins industriais.

Embora a Austrália se revele um caso de esperança, no outro lado do pacífico a história foi totalmente diferente. A divisão e desconfiança nos Estados Unidos aumentaram claramente e o caráter divisivo dos líderes contribuiu muito para isso. Os norte-americanos partiram de divisões que já existiam antes da pandemia e exacerbaram-nas ao máximo. Não podemos dizer que se trata de um fenómeno exclusivamente americano, mas a verdade é que o negacionismo encontra o seu expoente máximo na “terra das oportunidades”. Proprietários e donos de estabelecimentos são constantemente insultados pelo uso da máscara e alunos recusam-se a seguir medidas de segurança nesta luta contra um fenómeno que vai muito além de cada um de nós.

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Uma das causas desta desarmonia está na forma como os líderes norte-americanos definiram esta ameaça e este perigo de formas profundamente diferentes. A pandemia do coronavírus, que poderia e deveria ter unido, não o fez. Por um lado, os democratas e os progressistas dizem que a questão é a doença e que se trata de um debate de saúde pública. A resposta está na solidariedade e em reconhecer que o nosso destino está ligado, sendo que o importante é cuidarmos do próximo.

Por outro lado, os republicanos dizem que tudo é uma questão de liberdade e que a única coisa que temos de proteger é o nosso direito de fazermos o que bem entendermos. Segundo eles, apesar do número avassalador de mortes no país, a ameaça sanitária é exagerada. Enquanto uns estão mais agoniados com as liberdades individuais do que com proteção da saúde de todos os que os rodeiam, outros tentam promover um certo tipo de solidariedade social. Os Estados Unidos encontram-se, uma vez mais, perante um gigantesco impasse.

Surgiu também uma nova faceta deste fenómeno, fruto dos sucessivos confinamentos e do mundo digital em que vivemos. Cada vez mais, adversários políticos confrontam-se online e torna-se muito mais fácil o enfurecimento através de uma imagem no ecrã, desprezando-se o ser humano à nossa frente. A individualidade e solidão cresceram e um dos problemas desta experiência pandémica foi que nos atomizámos e individualizámos. Os norte-americanos afastaram-se para os seus pequenos mundos e perderam aqueles locais de reunião onde as pessoas se juntam verdadeiramente, criando um sentimento de união.

Ao longo dos últimos dois anos assistimos a um acentuado crescimento do artificial e a uma exponencialização de sentimentos socialmente devastadores. Tudo isto levou à maturação da ideia de que há fações marcadamente antagónicas nos Estados Unidos da América.

Parecia inimaginável nos primeiros meses da pandemia, quando se elogiavam médicos, enfermeiros e todos aqueles que trabalhavam na primeira linha a salvar vidas em hospitais, assistir a desplantes e a tamanhas ofensas a profissionais de saúde, ao ponto de vários se sentirem ameaçados e ofendidos. O elemento ideológico profundamente anticiência que está largamente presente em território americano tem vindo a exercer uma pressão interna de forma criar uma versão alternativa dos factos e da realidade. É verdadeiramente peculiar tal fenómeno encontrar tamanha adesão num país que reúne em si autoridades da Ciência reconhecidas internacionalmente ao longo dos últimos dois séculos. Mas a verdade é que se têm vindo a questionar verdades fundamentais sobre o que é viver em democracia, sobre o que é fazer parte de um todo e o que significa cidadania, onde as ações individuais afetam genuinamente todos aqueles que nos rodeiam. Há cada vez mais pessoas que não reconhecem que, ao se recusarem a cumprir normas baseadas em dados científicos e até em bom senso, estão a colocar em perigo a vida de terceiros.

E a realidade é que o motivo pelo qual tantos americanos se têm mostrado tão agressivos, indestrutíveis e até violentos é porque são incentivados por alguns políticos a fazê-lo. Isto revela-se deveras destrutivo tanto para a sociedade, como para a democracia. Este tipo de tribalismo já está de tal forma embrenhado na sociedade norte-americana que o próprio Donald Trump foi vaiado recentemente após ter incentivado à vacinação. Nem o próprio ex-presidente, que ajudou a criar e desenvolver este tribalismo e que não fez de todo o suficiente para unir o país no apoio à ciência, consegue levar os seus apoiantes a acreditarem nos factos. Trata-se de um aspeto que poderá ser incomensuravelmente destrutivo para a sociedade no futuro. E este tipo de questões adivinha-se já no horizonte quando se tentarem abordar problemas como as alterações climáticas, a justiça social ou a pobreza, problemas esses que existem desde há muito e cuja gravidade se tem avultado no século XXI.

Mas, perante uma crise desta dimensão, também é possível encontrar atos que não demonstram nada senão humanidade. Um dos aspetos mais extraordinários a que se assistiu durante a pandemia nos Estados Unidos foi o aumento do número de redes de assistência mútua, desde pequenos bairros a grandes metrópoles, em subúrbios e vilas do interior. Pessoas de várias origens sociais a entregarem comida e medicamentos àqueles que não podiam sair durante os tempos mais duros das primeiras vagas do vírus. Há, pois, uma vertente de envolvimento cívico que também faz parte desta história, mas que ainda não encontrou forma de se expressar plenamente nos diversos meios de comunicação. É preciso honrar a fraternidade e a parte da cultura humana em que as pessoas encontram apoio umas nas outras, quer nos Estados Unidos, quer em qualquer país do mundo.

A dúvida agora sobeja na possibilidade de um projeto que possamos abraçar juntos e que, de alguma forma, devolva o sentimento de bem-coletivo. Além dos Estados Unidos, países como o Brasil viram todas as suas fragilidades exploradas ao máximo durante esta pandemia e uma liderança robusta e verdadeira urge. Temos décadas de tempos inclementes para trás e os vindouros prenunciam-se ainda mais complicados. A não ser que a resposta coletiva seja vigorosa, teremos um período ainda mais penoso pela frente.