Normalmente, tendemos a pensar que o mundo se estende desde a Europa de Leste até à Califórnia (com os nossos amigos japoneses, sul-coreanos e australianos a visitarem-nos de vez em quando), e que tudo o resto é apenas um lugar estranho que precisa de ajuda. Mas a verdade é que já não nos podemos dar ao luxo de pensar assim.

Creio poder dizer com alguma certeza que as coisas nunca mudaram tanto e tão rapidamente como estão a mudar no nosso tempo de vida e acreditar que o resto do mundo vem depois do hemisfério ocidental é sinónimo de uma postura cada vez mais perigosa.

Isso reflete-se neste momento no que está a acontecer com a Ucrânia na cena mundial. Se olharmos atentamente para além da Linha do Equador, apercebemo-nos de que a maior parte da população mundial não está alinhada com o “Ocidente” na sua luta contra a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia. E a guerra em si apenas pôs em evidência um fenómeno muito mais vasto.

Muitos dos maiores e mais poderosos países do mundo em desenvolvimento têm vindo a tornar-se cada vez mais “anti-Ocidente” e “anti-americanos”.

Quando o Brasil elegeu recentemente Lula da Silva para a presidência, muitos ficaram aliviados por o diplomata do Twitter, Jair Bolsonaro, ter sido substituído por uma figura tradicional e familiar do centro-esquerda. No entanto, Lula optou por criticar prontamente o “Ocidente”, enfurecer-se contra a hegemonia do dólar e afirmar desajeitadamente que tanto a Rússia como a Ucrânia são igualmente culpáveis pela guerra devastadora no leste do Velho Continente. Há poucos dias, Lula recebeu Nicolás Maduro, cujo reinado de ferro levou milhões de pessoas a fugir do país. Lula elogiou generosamente o ditador e criticou Washington por negar a legitimidade de Maduro e impor-lhe sanções.

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Por outro lado, o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, tinha a reputação de ser um moderado prático e amigo dos negócios, com fortes laços com o “Ocidente”. No entanto, a África do Sul está a aproximar-se cada vez mais das órbitas russa e chinesa. O país recusou-se a condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia, recebeu as marinhas russa e chinesa para exercícios conjuntos e agora é acusado pelos EUA de fornecer armas à Rússia.

Além disso, o Médio Oriente está a ver as suas dinâmicas mudarem como nunca e a mais recente reintegração da Síria na Liga Árabe, denotada pelo acolhimento jovial de Bashar al-Assad na sua cimeira, demonstra verdadeiramente quão complicados, espinhosos e complexos serão os desafios nesta turbulenta região do globo nos próximos anos.

Além disso, temos o Presidente do Irão, que completou recentemente um tour diplomático pela América do Sul, procurando reforçar os laços políticos e económicos com aliados que se opõem ao domínio ocidental. Antes mesmo de partir em direção ao belo subcontinente americano, Ebrahim Raisi afirmou que as relações entre a República Islâmica do Irão e os países independentes da América Latina são estratégicas e que a sua posição é “contra o imperialismo e o unilateralismo”.

E depois há a Índia, que deixou claro desde o início da guerra da Ucrânia que não tinha qualquer intenção de se opor à Rússia, que continua a ser o principal fornecedor de armamento avançado às forças indianas. As declarações indianas sobre o seu desejo de manter um equilíbrio nas suas relações com o “Ocidente” e a Rússia, e mesmo com a China, têm sido tão numerosas que Ashley Tellis, um dos mais respeitados académicos em relações EUA-Índia, escreveu um ensaio avisando Washington para não assumir que Nova Deli estaria do seu lado em qualquer crise futura com Pequim. É verdade que o primeiro-ministro indiano Narendra Modi se vai encontrar com o Presidente Biden em Washington neste mês de junho. Contudo, dias depois, como a Índia detém atualmente a presidência da Organização para a Cooperação de Xangai, Modi será também o presidente da cimeira anual dessa mesma organização, recebendo os Presidentes Putin e Xi Jinping, o mais recente “grande timoneiro” em terras chinesas.

O que é que se passa então? Porque é que os EUA estão a ter tantos problemas com tantos dos maiores países “em desenvolvimento” do mundo?

Estas atitudes radicam num fenómeno que devemos encarar como “a ascensão do resto”.

Nos últimos 20 anos, registou-se uma enorme mudança no sistema internacional. Países outrora populistas, mas extremamente pobres, passaram das margens para o palco principal. Os chamados “mercados emergentes”, que antes constituíam uma franja insignificante da economia mundial, representam atualmente metade da mesma. Parecem-me bastante emergidos.

À medida que estes países se tornaram economicamente mais poderosos, politicamente estáveis e culturalmente orgulhosos, tornaram-se mais nacionalistas – e o nacionalismo é frequentemente definido em oposição aos países que têm ditado os destinos do sistema internacional, ou seja, o “Ocidente”.

Muitas destas nações foram outrora colónias de impérios europeus e, por isso, mantiveram uma aversão instintiva aos esforços ocidentais para restabelecer a confiança entre ambas as partes.

Refletindo sobre este fenómeno no contexto da guerra na Ucrânia, o outro fator desta desconfiança é que estes países não acreditam nos EUA quando os ouvem falar a favor de “uma ordem internacional baseada em regras”. Estes países veem Washington envolto em arrogância e hipocrisia. Os Estados Unidos aplicam regras aos outros, mas violam-nas eles próprios nas suas muitas intervenções militares e sanções unilaterais. Exorta os países a abrirem-se ao comércio e às trocas comerciais, enquanto opta por violar esses princípios quando bem entende.  Este é o novo mundo. Não é caracterizado pelo declínio dos EUA, mas antes pela ascensão de todos os outros. Vastas partes do globo, que outrora eram peões no xadrez geopolítico, são agora jogadores e tencionam traçar o seu próprio caminho, muitas vezes orgulhoso e egoísta. Terão de ser persuadidas, portanto, com políticas honestas que sejam efetivamente praticadas nos seus países e não apenas pregadas no estrangeiro.

Navegar neste mar revolto internacional é o grande desafio da diplomacia no nosso futuro. O mundo é perigoso, não há dúvida alguma, mas é também profundamente belo.

No final de contas, tudo se resume à arte de ouvir. E o “Ocidente” nunca foi particularmente brilhante nisso.