Conhecida a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2021, importa tecer alguns comentários àquelas que são as medidas mais mediáticas e com maior impacto na vida dos contribuintes.
Venda de acções em sociedades anónimas titulares de bens imóveis
Trata-se de um esquema constante dos mais elementares manuais de planeamento fiscal agressivo/abusivo e que vê agora o seu fim, caso a proposta de OE venha a ser aprovada. Durante anos, para escaparem ao Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT), ou verem a sua tributação em sede de IRS reduzida, alguns contribuintes integravam os seus imóveis em sociedades anónimas, procedendo à alienação das respectivas acções caso pretendessem vender os imóveis. Como consequência, o comprador escapava à tributação em sede de IMT e o vendedor via a sua factura de IRS reduzida a 28% (em vez de uma tributação potencialmente superior a 48%, caso o imóvel fosse vendido sem recurso a esta estrutura).
Pese embora a existência de uma cláusula geral anti-abuso, onde caem situações desprovidas de substrato económico e com propósito exclusivamente fiscal – como é o caso da alienação de acções atrás descrita -, os contribuintes sempre logravam, com relativa facilidade, furtar-se às malhas da sobredita cláusula.
Assim, de acordo com a proposta de Orçamento do Estado, e tal como sucedia já no caso das sociedades por quotas, passa a estar sujeita a IMT a alienação de acções em sociedades anónimas, cujo activo seja constituído em mais de 50% por bens imóveis, e sempre que, através de tal alienação, o adquirente fique a dispor de, pelo menos, 75% do capital social. De fora desta tributação ficam, naturalmente, as sociedades cujos imóveis se encontrem afectos a uma actividade de natureza agrícola, industrial ou comercial, com excepção da compra e venda de imóveis (que podem, contudo, beneficiar da isenção de IMT nas aquisições para revenda). Pese embora não se verifique uma norma espelho do lado do IRS – que penalize o rendimento obtido com a alienação de acções em sociedades constituídas maioritariamente por bens imóveis -, haverá agora um desincentivo à utilização deste tipo de mecanismos, pelo que é de aplaudir esta iniciativa.
Redução das taxas de retenções na fonte
Conforme já amplamente abordado nos media, a redução das taxas de retenção na fonte não consagra uma verdadeira redução no imposto sobre o rendimento (mantendo-se inalteradas as taxas gerais), mas, sim, um mero paliativo que possibilita aos contribuintes uma disponibilidade financeira mensal acrescida, tendo em consideração que o montante que lhes é ceifado ao vencimento será agora reduzido. Contudo, esta medida implicará, certamente, um menor reembolso ou, mesmo, o apuramento de um montante de imposto a pagar, aquando do acerto final a concretizar em 2022, após a entrega da declaração anual de rendimentos referente a 2021. Pelo que, pese embora se louve esta redução, na medida em que, no momento actual de crise, a mesma potenciará mais moeda nas mãos dos cidadãos e, em geral, na economia, não deverá deixar de se notar que a mesma tem um efeito meramente anestésico.
IVAucher
No mesmo açude da medida anteriormente abordada, o IVAucher almeja deixar rendimento nas mãos dos contribuintes, em concreto, ao permitir que o IVA suportado em refeições, alojamento e cultura em cada trimestre possa ser descontado em aquisições nos mesmos sectores no trimestre seguinte. Trata-se, pois, de uma medida com dupla virtualidade: a de revitalizar os sectores que mais sofreram com a pandemia em consequência das medidas de confinamento, e, bem assim, a de servir no combate à evasão fiscal, na medida em que implica a exigência de factura aos prestadores dos serviços em causa. Não será, pois, de desconsiderar a possibilidade de se alargar, em sede do debate parlamentar que se irá seguir, o âmbito de aplicação desta medida, por forma a abranger outras áreas, tais como os serviços de manutenção automóvel, de beleza ou de construção civil. Saliente-se que a utilização deste benefício comporta a impossibilidade de o IVA que foi objecto de desconto ser deduzido para efeitos de IRS, no âmbito do regime de dedução à colecta de 15% do IVA suportado em determinados sectores.
Descida da taxa de IVA aplicável à venda de máscaras e de gel desinfectante
Expectável e elementar é a proposta de redução de 23% para 6% da taxa de IVA aplicável na venda de máscaras e de gel desinfectante, tendo em consideração que estes produtos, para além de concorrerem decisivamente para a não propagação do vírus, são em muitos locais de uso obrigatório. Esperemos, contudo, que não haja um eventual aproveitamento desta redução por parte dos retalhistas, que poderão cair na ignóbil, mas não tão raras vezes vista, tentação de manter os preços inalterados, fazendo, consequentemente, subir o seu lucro.
Agravamento da tributação do crédito ao consumo
Contrariamente à ideia que veiculou, nem todas as medidas são favoráveis aos cidadãos, emergindo desta proposta de OE um agravamento de 50% nas taxas de Imposto do Selo devidas no âmbito do crédito ao consumo. Apesar de se entender o intuito desta medida, no sentido de desincentivar o endividamento das famílias, não pode deixar de se censurar o carácter algo paternalista e insidioso da mesma, uma vez que atento o espartilho fiscal em que vivemos, o recurso ao crédito acaba, muitas vezes, por ser a única forma de os cidadãos terem capacidade de investir, consumir e, consequentemente, de a economia pulsar.
Imposto sobre veículos adquiridos na União Europeia
Também de louvar, se bem que imposta pela Comissão Europeia no âmbito de processos instaurados pela infracção por Portugal do princípio da não discriminação tributária, é a medida que altera a fórmula de cálculo do Imposto sobre Veículos aplicável sobre veículos adquiridos noutro Estado-membro da União Europeia. Em breve resumo, de acordo com a legislação actualmente em vigor, os veículos adquiridos em estado usado num Estado-membro da União Europeia são tributados de forma idêntica aos veículos novos adquiridos em Portugal, tendo em consideração que, no cálculo da componente ambiental, não é tida em consideração a idade dos veículos. Tal disparidade deixará, assim, de se verificar, caso esta medida venha a ser aprovada, passando os veículos adquiridos noutro Estado-membro da União Europeia a beneficiar de um desconto que será tanto maior quanto maior for a sua idade.
Medidas fiscais sobre as empresas
Do lado da tributação das empresas, destaca-se e saúda-se a prorrogação, até ao fim do primeiro semestre de 2021, do Regime do Crédito Fiscal Extraordinário ao Investimento (CFEI), que permite às empresas deduzir à colecta do IRC (até ao limite de 5 milhões de euros) 20% das despesas de investimento e, bem assim, a criação de uma medida de apoio à internacionalização de pequenas e médias empresas, que consiste na possibilidade de dedução à colecta do IRC de 110% das despesas incorridas com as acções destinadas à internacionalização.
Epílogo: congelar para ver
Em virtude dos condicionalismos económicos próprios de um tempo excepcional e, bem assim, da circunstância de um Governo minoritário que se coloca à mercê dos partidos de extrema-esquerda, não cabiam neste Orçamento, do ponto de vista fiscal, grandes reformas ou medidas de fundo. Quiçá, dialogando à direita e com um plano estratégico de fundo fosse possível aproveitar este momento para reformular os principais impostos (desperate times call for desperate measures), no sentido de fazer incidir o foco fiscal no consumo e não no rendimento, dotando os cidadãos e as empresas de uma maior capacidade de aquisição e de investimento e potenciando o investimento externo. Não obstante ser de louvar a boa vontade do Governo na implementação de medidas fiscais que potenciam uma maior disponibilidade monetária aos contribuintes, não restam dúvidas de que este não será um Orçamento de solução, mas de contenção, na expectativa desarrojada do que o próximo ano poderá trazer.