O novo governo alemão chegou às notícias pela promessa de um acordo de coligação capaz de agradar a sociais-democratas, verdes e liberais. Olaf Scholz, um estadista improvável e chanceler de compromisso, apresentou-se em campanha como a continuação de Merkel, mas arranca na chancelaria com planos reformistas que surpreenderam a Europa.
A súbita ambição de Scholz pode explicar-se pelas dificuldades de negociar uma coligação entre partidos substancialmente diferentes, que passaram por dificuldades nos últimos anos e não estariam necessariamente interessados na participação num governo desinteressado em governar.
Um novo governo de esquerda que começa por prometer mudança – e sobretudo mudanças de grande carga simbólica, como a promessa de uns Estados Unidos da Europa, a diminuição da idade mínima para votar ou a revisão das regras orçamentais – não é novidade. A história da última década pode escrever-se com as otimistas capas de jornal e artigos de opinião a prometer a viragem da página da austeridade com novos governos em França, na Grécia ou em Portugal. Para todos eles, o tempo veio demonstrar que a realidade tem tendência a sobrepor-se à revolução e nem sempre o mundo está disposto a seguir os ritmos de uma eleição nacional.
Para Olaf Scholz, portanto, o risco mais evidente é o da transformação em François Hollande, também ele um moderado improvavelmente eleito que foi promovido a “esperança” da esquerda europeia e acabou rapidamente derrotado nas políticas e na viabilidade eleitoral. A força de atração desse abismo pode ser substancial, porque a Alemanha não parece ter a tolerância francesa para reformas – mesmo depois de 16 anos com Merkel – e porque os liberais e os verdes terão de concordar entre si numa altura em que o debate político se parece encaminhar para a discussão sobre o papel do Estado numa reconstrução da economia por razões climáticas. O paradoxo ficou eloquentemente exposto pela circunstância de aos verdes ter sido atribuído o ministério da economia e do clima, com o propósito de gastar dinheiro em várias “transições”, enquanto os liberais ficaram com as finanças, presumivelmente com o objetivo de impedir a transição de dinheiro dos contribuintes para o Estado.
A grande diferença entre Scholz e Hollande parece ser contextual. O ímpeto de todos esses líderes mediáticos esbarrava inexoravelmente no consenso europeu que Merkel criou, moldou e foi sustentando. Grandes ideias de mudança à esquerda ou à direita encontravam sempre uma hostilidade prática e aritmética, pelo facto de não ser possível construir coligações transnacionais que lhes dessem força.
Já não é esse o caso. A substituição da direita cautelosa de Merkel acontece numa altura em que a esquerda perto do centro ganhou músculo nos governos europeus. Hoje há sete membros do Partido Socialista Europeu com assento no Conselho Europeu, contra oito do Partido Popular Europeu. Àqueles há que juntar alguns membros do grupo de liberais, uma massa heterogénea que tenderá a pender para a esquerda com o atual ambiente político, sobretudo se as preocupações com o défice e a dívida continuarem desaparecidas.
Scholz não encontra uma União Europeia com medo de políticas de intervenção na economia, aumentos de despesa ou promoção de valores progressistas. Entre os líderes das maiores potências da União, Emmanuel Macron (ministro de Hollande) em França e Mario Draghi em Itália têm uma carreira estabelecida junto de governos da esquerda, enquanto Espanha tem um governo que usa a pertença à esquerda como emblema identitário essencial. Com a saída do Reino Unido, a oposição mais relevante nas discussões orçamentais encontra-se num enfraquecido governo dos Países Baixos e, nas questões culturais, nos governos da Polónia e da Hungria.
À partida, parece um combate desigual. Ainda assim, seria um erro achar que agora o caminho do progresso é inevitável e que amanhã viveremos no paraíso dos trabalhadores e do politicamente correto. A política europeia exige maiorias, é verdade, mas maiorias normalmente tão amplas que as decisões se medem pela resistência dos vetos. Pode parecer difícil dizer não a uma coligação funcional que inclua a Alemanha, a França, a Itália e a Espanha. No entanto, é tentador ser o governo que aparece a bater o pé contra a aliança de poderosos progressistas em nome do interesse nacional.
É provável que a política europeia esteja prestes a mudar, mas adivinhar que essa mudança terá apenas um sentido é não tirar lições de tudo o que nos trouxe até aqui.
João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00.
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